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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Deus está aqui e eu estou noutro lado

   Deus está aqui e eu estou noutro lado


A alma cai na conta do que está obrigada a fazer, e
vê que a vida é breve , que o caminho da vida eterna é estreito,  que o justo se salva a custo,  que as coisas do mundo são vãs e enganosas, que tudo termina e acaba como a água que corre, que o tempo é incerto, o juízo rigoroso, a perdição muito fácil e a salvação muito difícil.

Por outro lado, sabe que tem uma enorme dívida para com Deus: Ele criou-a só para Ele, portanto, tem de O servir toda a sua vida; redimiu-a só por Si, portanto, só lhe resta na sua vontade uma resposta de amor.

 Ela sabe que, mesmo antes de nascer, tem muitos outros benefícios que deve a Deus e, no entanto, a maior parte da sua vida tem decorrido no ar.

De todas estas coisas, da primeira à última, há de prestar contas e dar razões até ao último centavo , quando Deus vier esquadrinhar Jerusalém com lanternas acesas, pois já é tarde e, talvez, o fim do dia.

Para remediar tanto mal e dano, sentindo sobretudo Deus aborrecido e escondido por ela O ter esquecido no meio das criaturas, tocada de pavor e dor interior de coração por tanta perdição e perigo, renunciando a todas as coisas, põe tudo de lado sem adiar um dia ou uma hora, e, com ânsias e gemidos saídos dum coração já ferido pelo amor de Deus, começa a invocar o seu Amado, dizendo:


Aonde Te escondeste, Amado,

e me deixaste num gemido?

Qual veado fugiste

Havendo-me ferido.

Atrás de Ti clamei, tinhas partido!

 

A nossa conversão começa por uma tomada de consciência:

Deus está aqui e eu estou noutro lado.

Deus está aqui e espera-me, mas eu deixo-me atrair e polarizar por outras realidades.

Esta tomada de consciência pode ser dolorosa, tal como quando compreendemos que durante muito tempo nos enganámos sem sequer nos apercebermos disso.

Mas a dor não nos deve conduzir ao desencorajamento, a nossa dor não deve ter a última palavra.

Ela é como um aguilhão que nos faz avançar.

E o nosso caminho de conversão prossegue com um grito, uma súplica que fazemos a Deus: «Vem em minha ajuda!»

 Esta tomada de consciência da nossa dispersão – Deus está aqui e eu estou longe– vai a par com a tomada de consciência dos nossos apegos desordenados.

 Os apegos desordenados são as nossas formas de nos relacionarmos com as pessoas, com as coisas, com os acontecimentos, as ideias, e que nos impedem de ser livres.

Todas essas realidades podem ser boas em si mesmas, mas posso ter com elas uma relação que me impede de ser livre.

Para ilustrar esta dificuldade e as consequências nefastas que tem sobre a vida espiritual, existe a alegoria da imagem dum pássaro que estivesse preso por um fio: não pode voar para o Céu da presença de Deus.

Eis alguns hábitos de imperfeição: o costume de falar muito, o apego a uma coisa da qual nunca se quer desfazer, bem como a uma pessoa, um vestido, um livro, uma cela, determinada espécie de comida, certas bisbilhotices e gosto de querer saborear coisas, como, por exemplo, saber, ouvir e outras semelhantes.

 E, enquanto a alma permanecer nessa imperfeição, por mais pequena que seja, é escusado tentar avançar na perfeição.

Pouco importa que um pássaro esteja preso por um fio delgado ou por um fio grosso, porque, apesar de delgado, enquanto não se desfizer dele, estará tão preso para voar como por um grosso.

É verdade que o delgado é mais fácil de partir, mas, mesmo assim, se não o partir, não voará.

Assim também a alma que está presa nalguma coisa: por muita virtude que tenha, não chegará à liberdade da vida eterna. 

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