União mistica
Essa é a síntese do servo consciente com a Realidade criada que manifesta o Cosmos.
Unitas indistinctionis
No século XIII, dentro do cristianismo, surgiu uma visão nova e suspeita da união
mistica que veio a ser discutida ao longo da Idade Média mais tardia.Essa nova tendência enfatizava a união essencial ou ontológica entre Deus e a alma e pode ser considerada próxima à concepção de união encontrada nos escritos de Plotino e Proclo , embora não haja evidências de que esses textos antigos tenham fornecido a única fonte de inspiração para essas mudanças.
Essa nova tendência foi registrada inicialmente em algumas mulheres místicas do século XIII e do início do século XIV, como Hadewijch de Brabante, Metchild de Magdeburg e Marguerite Porete, e foi formulada de maneira mais teologicamente sofisticada na obra de Eckhart.
Os místicos que insistiam na visão radicalmente dinâmica de que Deus se une com o humano enfatizavam, como já vimos, a preexistência virtual da pessoa em Deus como base para a possibilidade de uma união de indistinção.
Contudo, os místicos sufis encontravam suporte para sua ortodoxia na tah(wīd, o testemunho da unicidade divina para a qual eles tentavam retornar ao “morrer para esse mundo” e ao se tornarem “como eram, quando eram antes de ser”, o que os conduzia a uma afirmação de identificação total.
Na literatura mística, normalmente, a palavra união é combinada com a palavra Deus, significando duas entidades, a alma e Deus, conjuntas em união.
Porém, para alguns autores místicos, o que ocorre, ocorre tanto entre humano e divino quanto dentro do próprio divino, e as duas uniões são uma única.
Os sufis nunca adotaram a linguagem plotiniana do “além do ser”, mas eles encontraram outra forma para articular uma união não baseada em substância.
Na fanā’ e baqā’, a união não é entre duas substâncias, essências ou entidades, mas significa a obliteração de uma delas e o preenchimento do espaço psíquico com outra, uma união no ato de percepção.
A auto-revelação da Deidade no coração humano ocorre na
interseção da unidade absoluta e do mundo da criação, no ponto onde a criação
flui para o mundo e, por meio do polimento do espelho do coração humano, é
levada de volta para o divino.
Segundo Ibn’Arabī:
O Real está perpetuamente em um estado de “união” (wasl) com a existência criada ... Isso é indicado por Suas palavras, “Ele está contigo onde quer que estejas” , isto é, em qualquer estado que tenhas na não-existência, na existência, e em todas as qualidades. Tal é de fato a situação.
... Os Homens buscam estar com o Real para sempre em qualquer forma que Ele se manifeste. Ele nunca cessa de se manifestar nas formas de seus servos continuamente, portanto o servo está com ele onde quer que Ele se manifeste continuamente ... O gnóstico nunca cessa de testemunhar a proximidade continuamente, já que ele nunca cessa de testemunhar as formas dentro de si e fora de si, e isso não é nada senão a auto-manifestação do Real.
Marguerite Porete, diz que à medida que o divino é considerado como ser, o mundo e a alma são nada.
Segundo Ibn’Arabī:
O Real está perpetuamente em um estado de “união” (wasl) com a existência criada ... Isso é indicado por Suas palavras, “Ele está contigo onde quer que estejas” , isto é, em qualquer estado que tenhas na não-existência, na existência, e em todas as qualidades. Tal é de fato a situação.
... Os Homens buscam estar com o Real para sempre em qualquer forma que Ele se manifeste. Ele nunca cessa de se manifestar nas formas de seus servos continuamente, portanto o servo está com ele onde quer que Ele se manifeste continuamente ... O gnóstico nunca cessa de testemunhar a proximidade continuamente, já que ele nunca cessa de testemunhar as formas dentro de si e fora de si, e isso não é nada senão a auto-manifestação do Real.
Marguerite Porete, diz que à medida que o divino é considerado como ser, o mundo e a alma são nada.
À medida que o mundo e a alma são considerados como seres, o
divino está para além desse ser, é nada.
A união ocorre dinamicamente apenas enquanto uma das entidades é considerada como estando além, esvaziada ou transcendendo seu ser e substância.
Na obra de ambos os autores, à medida que se aproxima a união, o sujeito se aproxima da coincidentia oppositorum, que pode ser expressa tanto como uma presença simultânea de contraditórios ou, na narrativa, como uma oscilação violenta entre eles.
O momento no qual o transcendente se revela como imanente é o momento da união mística.
A união ocorre dinamicamente apenas enquanto uma das entidades é considerada como estando além, esvaziada ou transcendendo seu ser e substância.
Na obra de ambos os autores, à medida que se aproxima a união, o sujeito se aproxima da coincidentia oppositorum, que pode ser expressa tanto como uma presença simultânea de contraditórios ou, na narrativa, como uma oscilação violenta entre eles.
O momento no qual o transcendente se revela como imanente é o momento da união mística.
No momento dessa união mística, os atributos divinos não
são conhecidos por um sujeito não-divino, a distinção entre Deidade e criação e
a dualidade entre amante e amado são desfeitas.
Os atributos aparecem no espelho, e a imagem no espelho é divina no humano e humana no divino.
Em Ibn’Arabī, a “união” resulta do processo da remoção do véu da ignorância que obscurece a natureza fundamental da pobreza ontológica humana e o reconhecimento da única Existência (a aniquilação em Deus).
Daí por diante, a subsistência em Deus permite que o místico possa compreender, no vazio de seu coração – o espelho do humano/divino – as sempre novas manifestações dos nomes e atributos divinos, identificando-se com elas a cada momento.
Para Porete, a união representa o ápice de um processo análogo de reconhecimento da pobreza e da humildade humanas.
Neste processo, o despojamento e a aniquilação da vontade e do conhecimento criatural resultam na atualização da Trindade gravada na alma como a marca especular do divino/humano, que traz para a alma a sua liberdade e a sua paz originais.
Os atributos aparecem no espelho, e a imagem no espelho é divina no humano e humana no divino.
Em Ibn’Arabī, a “união” resulta do processo da remoção do véu da ignorância que obscurece a natureza fundamental da pobreza ontológica humana e o reconhecimento da única Existência (a aniquilação em Deus).
Daí por diante, a subsistência em Deus permite que o místico possa compreender, no vazio de seu coração – o espelho do humano/divino – as sempre novas manifestações dos nomes e atributos divinos, identificando-se com elas a cada momento.
Para Porete, a união representa o ápice de um processo análogo de reconhecimento da pobreza e da humildade humanas.
Neste processo, o despojamento e a aniquilação da vontade e do conhecimento criatural resultam na atualização da Trindade gravada na alma como a marca especular do divino/humano, que traz para a alma a sua liberdade e a sua paz originais.
Em ambos, a união significa a recuperação da consciência
de um estado primordial eterno.
Ao passar para além do discurso, para aquilo que através de seus textos pode ser caracterizado como um estado unitivo de ser, acontece uma mudança fundamental de consciência.
O centro da consciência parece se deslocar do eu para um ponto além do eu, em um momento em que nada é discernido como não-eu.
Portanto, nesse momento, ou evento de “desconhecimento” e esquecimento, a experiência está isenta de um senso de eu, não tem a habitual estrutura “sujeito-objeto” que determina os processos epistemológicos comuns, segundo a compreensão da tradição intelectual ocidental, a qual, por isso mesmo, vê com certa desconfiança essas afirmações dos místicos.
As tradições orientais, afirmam que há uma outra forma, não- dual, de experienciar o mundo, e que essa outra modalidade de experiência é, de fato, mais verídica e superior à modalidade dualística que normalmente tomamos por certa.
Nesses sistemas, a natureza não-dual da realidade é revelada apenas naquilo que eles chamam de iluminação ou liberação (nirvana, moksa, satori etc.).
Embora tenha diferentes nomes nos diferentes sistemas e seja descrita em diferentes termos, tal experiência não pode ser alcançada ou compreendida conceitualmente.
As tentativas intelectuais dão lugar às várias técnicas meditativas que, segundo se afirma, promovem a experiência não-mediada da não- dualidade.
Esse acontecimento da alma que entra num eterno agora e se torna una com a Deidade que é puro “Nada” e puro Ser, esse desfazer do sujeito que se nadifica num vazio interno, esse estado unitivo que resulta não do esforço, mas do abandono de qualquer esforço, enfim, a pressão da expeiência de Deus tal como relatada por místicos apofáticos, parecem requerer uma reformulação da “experiência” tal como normalmente compreendida.
Ao passar para além do discurso, para aquilo que através de seus textos pode ser caracterizado como um estado unitivo de ser, acontece uma mudança fundamental de consciência.
O centro da consciência parece se deslocar do eu para um ponto além do eu, em um momento em que nada é discernido como não-eu.
Portanto, nesse momento, ou evento de “desconhecimento” e esquecimento, a experiência está isenta de um senso de eu, não tem a habitual estrutura “sujeito-objeto” que determina os processos epistemológicos comuns, segundo a compreensão da tradição intelectual ocidental, a qual, por isso mesmo, vê com certa desconfiança essas afirmações dos místicos.
As tradições orientais, afirmam que há uma outra forma, não- dual, de experienciar o mundo, e que essa outra modalidade de experiência é, de fato, mais verídica e superior à modalidade dualística que normalmente tomamos por certa.
Nesses sistemas, a natureza não-dual da realidade é revelada apenas naquilo que eles chamam de iluminação ou liberação (nirvana, moksa, satori etc.).
Embora tenha diferentes nomes nos diferentes sistemas e seja descrita em diferentes termos, tal experiência não pode ser alcançada ou compreendida conceitualmente.
As tentativas intelectuais dão lugar às várias técnicas meditativas que, segundo se afirma, promovem a experiência não-mediada da não- dualidade.
Esse acontecimento da alma que entra num eterno agora e se torna una com a Deidade que é puro “Nada” e puro Ser, esse desfazer do sujeito que se nadifica num vazio interno, esse estado unitivo que resulta não do esforço, mas do abandono de qualquer esforço, enfim, a pressão da expeiência de Deus tal como relatada por místicos apofáticos, parecem requerer uma reformulação da “experiência” tal como normalmente compreendida.
Unitas indistinctionis, uma
experiência?
No centro ou no fundamento da experiência significativa, caracterizada como “união mística”, está aquilo que, ao final, se furta à experiência.
Então, em certo sentido, a aniquilação do sujeito e o “desconhecimento” de Deus permanecem além da experiência no sentido em que marcam um limite frente ao qual o ser que pensa e fala, que é capaz da experiência, seria dissolvido ou desfeito enquanto tal.
Lá, onde a união mística é alcançada, a alma é levada
para além de seu ser, de seu pensamento e de sua linguagem, que permanecem
sempre “do lado de cá” da fronteira além da qual tanto o
pensamento quanto a linguagem não podem passar.
Certos momentos místicos se aproximariam do “impossível” e seriam incomensuráveis com as estruturas e categorias da experiência comum.
Em místicos como Marguerite Porete e Ibn’Arabī, a “causa” de todo pensamento e linguagem, “aquilo sem o qual” eles simplesmente não são, é um Deus que permanece além de tal pensamento e linguagem, e a união com esse Deus implica a dissolução daquele que pensa e fala.
Para eles, o possível é dado de acordo com o excesso do “impossível”.
“Não se pode decidir se a negatividade desse ‘além’ resulta de um excesso de presença ou de ausência, de plenitude ou de falta, pois o verdadeiramente excessivo, precisamente, excede essa distinção.”
Tanto a tradição cristã dionisiana quanto a tradição sufi figuram uma relação íntima entre o abandono das coisas criadas e a dissolução ou morte do eu, e a representação dessa relação dentro de um movimento de amor e desejo cuja infinitude é sinalizada por meio de uma linguagem apofática, aberta.
Como a alma individual não pode estar presente lá onde a mais completa união com Deus ocorre, ela não pode diretamente saber, nomear ou representar a dádiva divina na união.
Em suas linguagens teológicas, que sinalizam um momento do “desconhecimento místico”, Porete e Ibn’Arabī não podem articular o “lugar” ou o “momento” no qual Deus e a alma estariam unidos, pois “lá”, o sujeito da linguagem estaria desfeito.
É nesse sentido que o “excesso” de Deus acaba por exceder a distinção de presença e ausência, pois “lá” onde Deus se dá mais completamente, a alma criada simplesmente não mais se encontra na presença de seu pensamento ou linguagem, sendo incapaz dessa distinção.
Ao pensamento e à linguagem que expressam esse desconhecimento místico de Deus só resta uma proliferação infindável de imagens que circum-ambulam o mistério.
Certos momentos místicos se aproximariam do “impossível” e seriam incomensuráveis com as estruturas e categorias da experiência comum.
Em místicos como Marguerite Porete e Ibn’Arabī, a “causa” de todo pensamento e linguagem, “aquilo sem o qual” eles simplesmente não são, é um Deus que permanece além de tal pensamento e linguagem, e a união com esse Deus implica a dissolução daquele que pensa e fala.
Para eles, o possível é dado de acordo com o excesso do “impossível”.
“Não se pode decidir se a negatividade desse ‘além’ resulta de um excesso de presença ou de ausência, de plenitude ou de falta, pois o verdadeiramente excessivo, precisamente, excede essa distinção.”
Tanto a tradição cristã dionisiana quanto a tradição sufi figuram uma relação íntima entre o abandono das coisas criadas e a dissolução ou morte do eu, e a representação dessa relação dentro de um movimento de amor e desejo cuja infinitude é sinalizada por meio de uma linguagem apofática, aberta.
Como a alma individual não pode estar presente lá onde a mais completa união com Deus ocorre, ela não pode diretamente saber, nomear ou representar a dádiva divina na união.
Em suas linguagens teológicas, que sinalizam um momento do “desconhecimento místico”, Porete e Ibn’Arabī não podem articular o “lugar” ou o “momento” no qual Deus e a alma estariam unidos, pois “lá”, o sujeito da linguagem estaria desfeito.
É nesse sentido que o “excesso” de Deus acaba por exceder a distinção de presença e ausência, pois “lá” onde Deus se dá mais completamente, a alma criada simplesmente não mais se encontra na presença de seu pensamento ou linguagem, sendo incapaz dessa distinção.
Ao pensamento e à linguagem que expressam esse desconhecimento místico de Deus só resta uma proliferação infindável de imagens que circum-ambulam o mistério.
O termo final dessa relação
permanece para além de identificação e nunca se torna o conteúdo da experiência
cognoscente.
Concluindo essa discussão, podemos fazer nossas as palavras de Carlson: “Por fim, penso eu, essa não-experiência no centro da experiência, essa morte no centro da vida, fundamentalmente dom: dom ao nosso pensamento e linguagem o seu movimento, ao nosso desejo a sua força, à nossa experiência a sua possibilidade.”
Concluindo essa discussão, podemos fazer nossas as palavras de Carlson: “Por fim, penso eu, essa não-experiência no centro da experiência, essa morte no centro da vida, fundamentalmente dom: dom ao nosso pensamento e linguagem o seu movimento, ao nosso desejo a sua força, à nossa experiência a sua possibilidade.”
CONCLUSÃO
Passamos pelo favorecimento que ambos dão à linguagem do amor para expressar a
aniquilação e a união com Deus, em especial do amor erótico, mostrando a
centralidade dos temas eróticos baseados na ode pré-islâmica para o “discurso
de perplexidade” dos sufis e de Ibn’Arabī em especial.
Da mesma forma, mostramos a utilização da linguagem do amor cortês
no meio béguine e em Porete, com
seu arrebatamento erótico, como o veículo para a ultrapassagem do eu na apófase
do desejo que ela realiza.
Ela representa uma mudança qualitativa que vai além
da esfera da predicação, onde o nome de Deus não busca determinar o que Deus é,
mas simplesmente se refere a Deus e enaltece Deus.
O nome de Deus não é um nome para se dizer, mas para se escutar. “O Nome não é dito, ele chama.”
No desconhecimento místico apresentado por Marguerite Porete e por Ibn’Arabī, vimos que Deus é Deus somente se Ele se retrai de nosso conhecimento, não só de fato, mas em princípio.
Essa confissão do não-conhecimento não é um simples fracasso para conhecer, mas é na verdade uma abertura à outra forma de conhecimento na qual o que se conhece de Deus é a sua incompreensibilidade.
Em suas abordagens ontológicas, Deus é uma possessão da alma, um a priori; a descoberta de Deus é a descoberta de si mesmo, do ser verdadeiro.
Nossos autores mostram a compreensão de que Deus é a fonte e a origem de tudo que reivindica ser, o que significa que todas as coisas criadas, em última análise, são contingentes, dependendo de Deus para qualquer substância que possuam.
Ainda que em algum sentido elas sejam algo, sua origem está além de seus próprios poderes, num ato de doação por meio do qual Deus fornece às criaturas seu ser como dádiva.
O inseparável reverso da anonimidade divina é a multiplicidade dos nomes divinos, a inter-relação da multiplicidade dos nomes e da anonimidade dentro do anseio e da aniquilação que caracterizam o retorno da alma para Deus são formulados, em Porete e em Ibn’Arabī, dentro do esquema neoplatônico clássico de processão, retorno e permanência, um esquema que identifica a origem e o fim da alma na absoluta simplicidade ou unidade de Deus.
A atualização da imagem da Trindade e o polimento do coração do conhecedor levam a alma para a simplicidade de seu fundo divino, que permanece além de toda distinção.
A permanência se refere à absoluta simplicidade do divino que, como origem e fim, fica além da emanação e do retorno, ainda que dê lugar a eles.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī descrevem um chamado indeterminado que chama o “eu” – em sua preexistência – a ser, de uma tal forma que o “eu” não pode ter estado presente para constituir, dominar e receber o chamado. Antes que o eu seja, o chamado o chama a ser e nesse sentido o chamado vem antes do Ser.
O nome de Deus não é um nome para se dizer, mas para se escutar. “O Nome não é dito, ele chama.”
No desconhecimento místico apresentado por Marguerite Porete e por Ibn’Arabī, vimos que Deus é Deus somente se Ele se retrai de nosso conhecimento, não só de fato, mas em princípio.
Essa confissão do não-conhecimento não é um simples fracasso para conhecer, mas é na verdade uma abertura à outra forma de conhecimento na qual o que se conhece de Deus é a sua incompreensibilidade.
Em suas abordagens ontológicas, Deus é uma possessão da alma, um a priori; a descoberta de Deus é a descoberta de si mesmo, do ser verdadeiro.
Nossos autores mostram a compreensão de que Deus é a fonte e a origem de tudo que reivindica ser, o que significa que todas as coisas criadas, em última análise, são contingentes, dependendo de Deus para qualquer substância que possuam.
Ainda que em algum sentido elas sejam algo, sua origem está além de seus próprios poderes, num ato de doação por meio do qual Deus fornece às criaturas seu ser como dádiva.
O inseparável reverso da anonimidade divina é a multiplicidade dos nomes divinos, a inter-relação da multiplicidade dos nomes e da anonimidade dentro do anseio e da aniquilação que caracterizam o retorno da alma para Deus são formulados, em Porete e em Ibn’Arabī, dentro do esquema neoplatônico clássico de processão, retorno e permanência, um esquema que identifica a origem e o fim da alma na absoluta simplicidade ou unidade de Deus.
A atualização da imagem da Trindade e o polimento do coração do conhecedor levam a alma para a simplicidade de seu fundo divino, que permanece além de toda distinção.
A permanência se refere à absoluta simplicidade do divino que, como origem e fim, fica além da emanação e do retorno, ainda que dê lugar a eles.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī descrevem um chamado indeterminado que chama o “eu” – em sua preexistência – a ser, de uma tal forma que o “eu” não pode ter estado presente para constituir, dominar e receber o chamado. Antes que o eu seja, o chamado o chama a ser e nesse sentido o chamado vem antes do Ser.
A aniquilação, com seu despojamento da qualidade
criada, permite
o retorno da alma ao Uno simples e indeterminado, no qual o eu verdadeiro
preexistia e existe eternamente.
Todo esse processo é descrito em termos de uma contra-experiência de perplexidade, de um evento que não se pode compreender, de algo queé possível ver, mas que não se pode “designar como um objeto ou como um ser”.
John Caputo também discorre sobre as semelhanças que podem ser encontradas entre a mística de Meister Eckhart, que partilhava da espiritualidade renana, com as formulações do zen-budismo, cujo treinamento também acontece na esfera do distanciamento e cujo conceito de sunyata reflete um fundo absolutamente indeterminado, incondicionado, nada em particular, um vazio, de onde tudo procede e para onde tudo retorna, alcançado apenas por meio da desistência de qualquer esforço para alcançá-lo.
O mundo em que Marguerite Porete e Ibn’Arabī viveram não existe mais.
Não vivemos mais sob a égide sagrada da era medieval, na qual havia uma conexão clara entre o conhecimento de Deus alcançado por meio da vida mística e a autoridade que podia ser reivindicada com base nesse conhecimento especial.
Nesse mundo de pensamento, a existência de Deus era tomada como certa e as preocupações que os místicos expressavam não são as questões que os filósofos contemporâneos perguntam.
É hoje lugar comum dizer que vivemos num mundo vazio de qualquer presença mística, graças à afirmação de uma razão puramente humana que, ao compreender a si mesma e ao mundo, visa manipular e dominar esse mundo tecnologicamente – o que podemos ver hoje acima de tudo na tecnologia da imagem que modela o nosso mundo.
Todo esse processo é descrito em termos de uma contra-experiência de perplexidade, de um evento que não se pode compreender, de algo queé possível ver, mas que não se pode “designar como um objeto ou como um ser”.
John Caputo também discorre sobre as semelhanças que podem ser encontradas entre a mística de Meister Eckhart, que partilhava da espiritualidade renana, com as formulações do zen-budismo, cujo treinamento também acontece na esfera do distanciamento e cujo conceito de sunyata reflete um fundo absolutamente indeterminado, incondicionado, nada em particular, um vazio, de onde tudo procede e para onde tudo retorna, alcançado apenas por meio da desistência de qualquer esforço para alcançá-lo.
O mundo em que Marguerite Porete e Ibn’Arabī viveram não existe mais.
Não vivemos mais sob a égide sagrada da era medieval, na qual havia uma conexão clara entre o conhecimento de Deus alcançado por meio da vida mística e a autoridade que podia ser reivindicada com base nesse conhecimento especial.
Nesse mundo de pensamento, a existência de Deus era tomada como certa e as preocupações que os místicos expressavam não são as questões que os filósofos contemporâneos perguntam.
É hoje lugar comum dizer que vivemos num mundo vazio de qualquer presença mística, graças à afirmação de uma razão puramente humana que, ao compreender a si mesma e ao mundo, visa manipular e dominar esse mundo tecnologicamente – o que podemos ver hoje acima de tudo na tecnologia da imagem que modela o nosso mundo.
Vemos hoje um modelo de sujeito humano moderno que, por meio de sua afirmação racional e tecnológica, esvazia o mundo da presença mística. Num mundo onde tudo é disponível, mensurável e manipulável, há poucos recessos de escuridão ou mistério, nenhuma distância ou transcendência – uma cultura de “presença total”.
Em contraste, nas tradições clássicas da teologia
mística, a criatura humana, em última análise, “era vista não como um senhor auto-
transparente de seu mundo, mas como uma imagem incompreensível de um
Deus incompreensível que se torna visível – como invisível – dentro e
através de um mundo totalmente teofânico”.
A era moderna trouxe a liberação do homem, introduziu o subjetivismo e o individualismo, mas também em nenhum outro momento o não-individual, na forma do coletivo, foi tão aceito como válido.
Há agora um conhecimento mais objetivo e uma realidade “mais objetiva” do que antes, mas a interioridade subjetiva nunca foi tão precária, fato comprovado pelo enorme sucesso de manuais de auto-ajuda para sermos nós mesmos, pela oferta dos mais diversos tipos de terapias que promovem ou prometem um caminho de introspecção, e por todo o tipo de “espiritualidades” exóticas que sinalizam alguma transcendência a ser alcançada por meio de práticas meditativas em ambientes saturados por velas coloridas e incensos.
A era moderna trouxe a liberação do homem, introduziu o subjetivismo e o individualismo, mas também em nenhum outro momento o não-individual, na forma do coletivo, foi tão aceito como válido.
Há agora um conhecimento mais objetivo e uma realidade “mais objetiva” do que antes, mas a interioridade subjetiva nunca foi tão precária, fato comprovado pelo enorme sucesso de manuais de auto-ajuda para sermos nós mesmos, pela oferta dos mais diversos tipos de terapias que promovem ou prometem um caminho de introspecção, e por todo o tipo de “espiritualidades” exóticas que sinalizam alguma transcendência a ser alcançada por meio de práticas meditativas em ambientes saturados por velas coloridas e incensos.
Ironicamente, o sujeito racional e soberano, que conquistou definitivamente
o seu mundo, responde hoje à anonimidade de Deus não com a anonimidade
do sujeito místico que alcançou o fundo comum da alma e de Deus, mas com a
anonimidade do humano que se torna invisível na nova sociedade e na nova
consciência de massa.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī mostram que o eu, a ipseidade em termos da qual as pessoas vivem a maior parte de suas vidas, é ilusório.
Decerto que eles falam do desmantelamento do senso de ipseidade criada para alcançar o fundo divino da alma onde o caráter de ser um “algo” é perdido.
Eles tentam descrever aquele ponto da alma no qual ela é transformada em Deus e, para ambos, a linguagem dessa descrição encontra os limites da própria linguagem e se rompe na escuridão do desconhecimento.
Eles aceitam a perplexidade desse não-saber o que são e onde se encontram, e conhecem a si mesmos ao não saber sua diferença de Deus.
Para eles, qualquer ipseidade que eles possam definir, não seria a ipseidade que é transformada na união com Deus.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī mostram que o eu, a ipseidade em termos da qual as pessoas vivem a maior parte de suas vidas, é ilusório.
Decerto que eles falam do desmantelamento do senso de ipseidade criada para alcançar o fundo divino da alma onde o caráter de ser um “algo” é perdido.
Eles tentam descrever aquele ponto da alma no qual ela é transformada em Deus e, para ambos, a linguagem dessa descrição encontra os limites da própria linguagem e se rompe na escuridão do desconhecimento.
Eles aceitam a perplexidade desse não-saber o que são e onde se encontram, e conhecem a si mesmos ao não saber sua diferença de Deus.
Para eles, qualquer ipseidade que eles possam definir, não seria a ipseidade que é transformada na união com Deus.
O que eles experimentam nessa união propiciada pela
iniciativa divina da graça é a experiência da perda da experiência do
eu.
Contudo, eles são ainda um eu.
Eles continuam a possuir os poderes humanos dos sentidos, da imaginação, do intelecto, da memória e da vontade.
Eles continuam a ter consciência desses poderes e de si mesmos como agentes, pois a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa.
A perfeição desses poderes é a sua despossessão, o término de sua operação autônoma, que os moveria a partir de qualquer outra coisa diferente da ação divina da graça.
O intelecto, a memória e a vontade – nossos “eus” como agentes – são fora de dúvida auto-conscientes. Eu sei que eles são “meus”, mas eles não precisam mais parecer serem meus como distintos do poder divino que agora os move, como se o fato de serem “meus” dependesse de não serem movidos totalmente por Deus.
Se eles são “meus” poderes – e são – e se eu os movo livremente – e eu o faço – eu não o faço em oposição ao fato de que Deus os move.
Contudo, eles são ainda um eu.
Eles continuam a possuir os poderes humanos dos sentidos, da imaginação, do intelecto, da memória e da vontade.
Eles continuam a ter consciência desses poderes e de si mesmos como agentes, pois a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa.
A perfeição desses poderes é a sua despossessão, o término de sua operação autônoma, que os moveria a partir de qualquer outra coisa diferente da ação divina da graça.
O intelecto, a memória e a vontade – nossos “eus” como agentes – são fora de dúvida auto-conscientes. Eu sei que eles são “meus”, mas eles não precisam mais parecer serem meus como distintos do poder divino que agora os move, como se o fato de serem “meus” dependesse de não serem movidos totalmente por Deus.
Se eles são “meus” poderes – e são – e se eu os movo livremente – e eu o faço – eu não o faço em oposição ao fato de que Deus os move.
A união com Deus, que resulta na incapacidade de
construir uma ipseidade que não seja una com Deus em atividade e identidade, não significa que
essa ipseidade seja construída pela exclusão da atividade própria ou
identidade numérica da alma. “Se eu não posso ter nenhuma identidade em contraste com a
de Deus, então minha identidade com Deus não pode se opor à minha identidade
comigo.”
Na escuridão do desconhecimento, para Marguerite
Porete e para Ibn’Arabī, está o reconhecimento de que nosso centro mais interno e profundo é Deus.
Com esse reconhecimento vem a convicção de que a fonte de onde nossas ações partem e de onde nos vem a nossa liberdade para amar está em nós, mas não é nossa, não a possuímos, somos possuídos por ela.
Com esse reconhecimento vem a convicção de que a fonte de onde nossas ações partem e de onde nos vem a nossa liberdade para amar está em nós, mas não é nossa, não a possuímos, somos possuídos por ela.
Quando as estruturas experienciais da ipseidade se desintegram
e nos descentram, somos levados ao amor divino, onde nos recentramos num
fundo que está além de qualquer
possibilidade de experiência.
Nesse novo centro adquirimos a capacidade de nos amar verdadeiramente, pois aí podemos nos amar com o amor incriado, indiferenciado, de Deus por si mesmo.
E se podemos nos amar assim, podemos amar tudo à nossa volta com o mesmo amor.
E se podemos amar tudo, podemos nos encontrar com a realidade em seus próprios termos e não nos nossos e espelhar no mundo a compaixão divina que a tudo abarca.
E o que esse sujeito místico pode hoje nos dizer quanto ao que significa “ser humano”?
Nesse novo centro adquirimos a capacidade de nos amar verdadeiramente, pois aí podemos nos amar com o amor incriado, indiferenciado, de Deus por si mesmo.
E se podemos nos amar assim, podemos amar tudo à nossa volta com o mesmo amor.
E se podemos amar tudo, podemos nos encontrar com a realidade em seus próprios termos e não nos nossos e espelhar no mundo a compaixão divina que a tudo abarca.
E o que esse sujeito místico pode hoje nos dizer quanto ao que significa “ser humano”?
A nós que, em algum lugar entre o sujeito em sua
auto- importância, o eu ditador, megalômano, para o qual a individualidade é o
valor máximo e a anonimidade da consciência grupal, das organizações,
descobertas e tecnologias, precisamos seguir nosso curso. A nós que precisamos
manter o valor intrínseco do indivíduo e seu direito de ser ele mesmo como um
contraponto à coletivização.
Talvez ele possa nos dizer que a
aniquilação não significa perder o eu ou não representa a alienação;
que a aniquilação mística significa uma nova sensibilidade para consigo
mesmo, uma sintonia para o que acontece no “ser interior”; que ela significa a proposta de
uma vida livre da possessividade e da tirania sobre as coisas, uma vida vivida
a partir de uma compaixão em relação às coisas, que detecta nelas uma presença mais profunda e que não segue a usurpação da criação pela
criatura; que não há aí uma destruição do homem, ou do indivíduo, mas uma
genuína recuperação
da essência humana; que a descida e a queda vividas na aniquilação
representam uma forma mais profunda de humanidade que tem o Amor no centro de toda a realidade e
que pode trazer um apelo a todos, homens e mulheres, que hoje buscam uma outra
compreensão de sua humanidade.
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