Alma, nafs, eu – o que é aniquilado?
Dentro do modelo da alma renano-flamengo, é a essência da alma que ocupa um lugar privilegiado, o lugar místico, sede de sua regeneração e da união de indistinção com o divino.
Essa é a parte mais nobre da
alma humana, seu fundo e essência nua, retratado em imagens abissais, no qual nada que é
humano pode entrar e no qual o Incriado reside.
Esse fundo ou essência se
distingue das faculdades da alma: a essência é a graça por meio da qual ela é o
que é e o que a define em seu ser próprio; as faculdades são os instrumentos
por intermédio dos quais ela realiza todas as suas operações.
Na essência não
se dá nenhuma operação.
Embora ela seja o fundo essencial de onde as
faculdades emanam, ela é pura passividade,
repouso absoluto, um lugar de silêncio onde todas as coisas criadas são
abolidas e só Deus fala.
A compreensão, termo que ela parece utilizar como a capacidade de compreender as coisas do reino divino e promover o progresso espiritual, é a parte mais elevada da alma e é gerada a partir da habilidade e do intelecto. Contudo, o conhecimento proveniente dessas capacidades está relacionado à vontade.
Para Porete, a partir de sua infinita bondade, Deus deu à alma uma vontade livre, mas a partir do exercício dessa vontade livre, a alma removeu sua vontade da vontade de Deus.
A compreensão, termo que ela parece utilizar como a capacidade de compreender as coisas do reino divino e promover o progresso espiritual, é a parte mais elevada da alma e é gerada a partir da habilidade e do intelecto. Contudo, o conhecimento proveniente dessas capacidades está relacionado à vontade.
Para Porete, a partir de sua infinita bondade, Deus deu à alma uma vontade livre, mas a partir do exercício dessa vontade livre, a alma removeu sua vontade da vontade de Deus.
A vontade livre da alma, dada livremente como uma dádiva
divina, pode se voltar para as coisas criadas ou para as coisas divinas.
Se a alma
permanece com sua vontade, ela se volta para as coisas criadas e,
conseqüentemente, sua habilidade e seu intelecto ficam limitados.
O
intelecto, gerado pela habilidade e controlado pela vontade, só fornece o
conhecimento permitido pela vontade.
Já que em seu recesso mais íntimo a alma se liga
a Deus por meio da imagem gravada da Trindade, ela nunca pode estar fora de
Deus, mas pode se prender a si mesma e se
afastar dele ou pode se ligar ao que há nela de mais profundo e unir-se a ele.
À medida que a vontade permanece no mundo criatural, das coisas, o intelecto estará limitado a esse mundo e, portanto, o conhecimento será de um tipo particular.
À medida que a vontade permanece no mundo criatural, das coisas, o intelecto estará limitado a esse mundo e, portanto, o conhecimento será de um tipo particular.
A
alma deve devolver sua vontade a Deus livremente para atingir o estado de
perfeição espiritual.
Ela deve se esvaziar, se tornar um verdadeiro nada que pode ser
preenchido apenas pela vontade e pela compreensão divinas.
Se a perfeição é atingida, no estado de aniquilação, a
alma não deseja mais sua própria vontade, mas apenas o desejo divino deseja
nela.
Evidentemente, o eu que é aniquilado não pode ser equiparado ao ego necessário á vida.
Evidentemente, o eu que é aniquilado não pode ser equiparado ao ego necessário á vida.
O místico, ao ser aniquilado, não perde sua
capacidade de estar cônscio, ainda que o foco de sua consciência não
esteja mais em si mesmo. Suas funções egóicas, no sentido descrito, permanecem.
Ele não se torna um psicótico incapaz de atuar sob
o princípio da realidade.
A aniquilação não significa que a realidade do indivíduo deixa de existir, e esse retorno à simplicidade não se relaciona ao que
normalmente é conhecido por regressão no sentido psicológico.
Se na fanā’, o pseudo-eu se dissolve no nada, na baqā’ ou “subsistência”, o místico recupera sua própria consciência normal cotidiana, mas é um ser que transcendeu sua própria determinação e vê o mundo normal fenomênico, em sua rica multiplicidade, com outros olhos, como as múltiplas determinações da Realidade única.
A primeira condição para que o progresso espiritual se realize é a tomada de consciência de que em si mesmas, independentemente do que têm de divino, as criaturas não são mais que um puro nada.
Se na fanā’, o pseudo-eu se dissolve no nada, na baqā’ ou “subsistência”, o místico recupera sua própria consciência normal cotidiana, mas é um ser que transcendeu sua própria determinação e vê o mundo normal fenomênico, em sua rica multiplicidade, com outros olhos, como as múltiplas determinações da Realidade única.
A primeira condição para que o progresso espiritual se realize é a tomada de consciência de que em si mesmas, independentemente do que têm de divino, as criaturas não são mais que um puro nada.
Tomando consciência de seus
próprios limites e negando-os voluntariamente, a alma renuncia a tudo o que faz
dela esse ser particular e determinado. Uma vez derrubados os entraves que a
mantinham na ignorância e as paredes que a particularizavam, a alma só passa a perceber em si a continuidade com o ser
do qual deriva, alcançando sua completa liberdade.
De uma maneira geral, o Corão se refere à alma ou ao eu dos seres humanos como aquilo que é responsável pela atividade e que será recompensado ou punido na vida eterna. Quando Ibn’Arabī utiliza al-nafs, sem nenhuma qualificação, ele está se referindo ao lado humano, ao eu ou à alma, nunca a Deus, ao qual ele se refere como al-dhāt.
Como outros autores, ele vê a alma, inclusive a alma universal, como uma barzakh, um istmo ou realidade intermediária, com “uma face voltada para a natureza e uma face voltada para o Espírito Divino.”
De uma maneira geral, o Corão se refere à alma ou ao eu dos seres humanos como aquilo que é responsável pela atividade e que será recompensado ou punido na vida eterna. Quando Ibn’Arabī utiliza al-nafs, sem nenhuma qualificação, ele está se referindo ao lado humano, ao eu ou à alma, nunca a Deus, ao qual ele se refere como al-dhāt.
Como outros autores, ele vê a alma, inclusive a alma universal, como uma barzakh, um istmo ou realidade intermediária, com “uma face voltada para a natureza e uma face voltada para o Espírito Divino.”
Quando Deus sopra o espírito no
barro com o qual criou Adão, faz surgir a alma ou eu, essa realidade
intermediária que partilha dos atributos de ambos. Desse modo, a alma se encontra
entre a luz e a escuridão, entre a perfeição e a imperfeição, entre o
conhecimento e a ignorância, entre a racionalidade e a irracionalidade e assim por diante.
Para Ibn’Arabī, a alma racional falante em sua origem é o sopro divino, liberada da dimensão animal da existência. Sua proximidade de Deus a mantém livre do pecado e de qualquer desobediência. Ela está para a alma animal como o cavaleiro para sua montaria. A alma animal está indissoluvelmente ligada ao corpo e a suas faculdades e, na prática, não é distinguível deste. É a alma racional que “vende para Deus” as almas animais.
De acordo com Ibn’Arabī, o auto-conhecimento é uma precondição absolutamente necessária para qualquer conhecimento verdadeiro, isto é, o conhecimento do Real.
Para Ibn’Arabī, a alma racional falante em sua origem é o sopro divino, liberada da dimensão animal da existência. Sua proximidade de Deus a mantém livre do pecado e de qualquer desobediência. Ela está para a alma animal como o cavaleiro para sua montaria. A alma animal está indissoluvelmente ligada ao corpo e a suas faculdades e, na prática, não é distinguível deste. É a alma racional que “vende para Deus” as almas animais.
De acordo com Ibn’Arabī, o auto-conhecimento é uma precondição absolutamente necessária para qualquer conhecimento verdadeiro, isto é, o conhecimento do Real.
Contudo, o cosmos está cheio de
véus que encobrem esse conhecimento e o maior deles é o eu que conhece.
Conseqüentemente, a tarefa mais urgente é reconhecer a necessidade de
levantar o véu que impede que o eu veja a si mesmo e aos outros.
O
fato de que o eu é o véu ajuda a entender o dito acima mencionado, “Aquele que
conhece a si mesmo, conhece o seu Senhor.”
Quando o véu é levantado e se torna
possível ver em seu lugar a auto-manifestação do Real, é possível compreender
que, paradoxalmente, o véu é idêntico à face
divina e que o velamento é o mesmo que
auto-manifestação, ou seja, o véu é o eu e o eu é a
face.
O problema é a ignorância, e a solução é o conhecimento.
Por isso, são os atributos criaturais que devem ser queimados, e a forma mais rápida para o auto-conhecimento é eliminar o véu, isto é, precisamente a ipseidade com a qual normalmente nos identificamos.
Ibn’Arabī deixa claro que para a perfeição humana é necessária a retenção de uma certa modalidade de auto-consciência durante a aniquilação e que, portanto, a aniquilação do eu experimentada pelo ser humano perfeito não é absoluta.
De qualquer modo, Ibn’Arabī sempre mantém que a aniquilação é um termo relativo, é
sempre a aniquilação de alguma modalidade inferior específica de consciência
para a simultânea subsistência através de uma modalidade superior específica de
consciência.
Nesse sentido, a aniquilação é validada através da subsistência
que a acompanha. Em última análise aquilo que sempre subsiste é a auto- manifestação do Real e o
que é aniquilado é o irreal – a consciência limitada do indivíduo.
Em resumo, no estado da fanā’ se dá a extinção total do próprio eu e de tudo que lhe é legado como objeto de cognição e de volição. Aqui, o místico vê todas as coisas do mundo perdendo sua aparente solidez ontológica, tornando-se fluidas e se dispersando na indiferenciação absoluta original da “Existência”.
Em resumo, no estado da fanā’ se dá a extinção total do próprio eu e de tudo que lhe é legado como objeto de cognição e de volição. Aqui, o místico vê todas as coisas do mundo perdendo sua aparente solidez ontológica, tornando-se fluidas e se dispersando na indiferenciação absoluta original da “Existência”.
Contudo, o estado mais
elevado da vida mística é representado pela baqā’, a permanência
eterna na Realidade Absoluta e com a
Realidade Absoluta – o estado espiritual no qual todas as coisas do mundo, após
serem absorvidas no Nada e dispersas na Unidade absoluta indiferenciada da
“Existência”, ressurgem
do fundo do Nada, aos olhos da consciência transformada do místico.
O coração, enquanto órgão de percepção teofânica e espelho polido da alma, mostra que o Ser de Deus na alma, que é o ser essencial da alma, não é um fato estabelecido, mas um processo de mudança de perspectivas que a alma deve realizar, uma fanā’ perpetuamente reencenada.
O coração, enquanto órgão de percepção teofânica e espelho polido da alma, mostra que o Ser de Deus na alma, que é o ser essencial da alma, não é um fato estabelecido, mas um processo de mudança de perspectivas que a alma deve realizar, uma fanā’ perpetuamente reencenada.
É aqui que se realiza a capacidade inata do ser humano,
sua fit*ra, a forma divina na qual foi criado.
Para Porete, a estratégia para descobrir, revelar e realizar esse eu verdadeiro, o tesouro da Trindade, é a sua crítica apofática do desejo, a aniquilação da vontade e do conhecimento criaturais.
Para Ibn’Arabī, a estratégia é se livrar da ignorância da verdadeira condição humana, da ilusão do eu soberano e autônomo, é abraçar o nada humano que pode acompanhar as flutuações divinas em suas perpétuas transformações.
Ainda que eles possam se referir ao senso de vertigem que a alma experimenta ao se debruçar sobre o abismo de seu próprio vazio, o sentimento final é o de retorno ao fundamento familiar, de recuperação do que foi uma vez a identidade conhecida e mais recentemente perdida.
A aniquilação do eu como um lugar de vontade distinta, de identidade com a presunção de auto-suficiência e de ilusão de soberania dá lugar à descoberta do eu que se mostra como a recuperação das linhas quebradas de continuidade com o eu preexistente em Deus.
Quando o eu
perde todos os nomes, as imagens e os atributos, ele se rende à opacidade e
finalmente não pode ver dentro de si, espelhando o vazio do Deus sem nome.
Na obra de Marguerite Porete e de Ibn’Arabī, o sujeito humano se mostra como uma imagem incompreensível
do Deus incompreensível.
Ao compreenderem a mais profunda incompreensibilidade do
humano, eles entendem a verdadeira incompreensibilidade de Deus.
De
certa forma, ambos insistem na absoluta transcendência tanto de Deus quanto do
eu, que estão além de qualquer possibilidade de serem apropriados dentro de uma
estrutura inteligível, significativa, desejável e possessiva de ipseidade.
Desejar qualquer coisa, mesmo ser um “lugar” onde Deus opera, é falhar em ser o “nada” no qual Deus sozinho pode trabalhar.
Desejar qualquer coisa, mesmo ser um “lugar” onde Deus opera, é falhar em ser o “nada” no qual Deus sozinho pode trabalhar.
A questão é tornar em desejo o que se é em si mesmo,
nada, um unum indistictum.
Na raiz de toda possessividade, de todo “atamento”, está o desejo de ser um eu.
Na raiz de toda possessividade, de todo “atamento”, está o desejo de ser um eu.
Contudo, para a béguine e para Ibn Arabi, qualquer eu que seja possível chamar de meu é um eu falso
e expressa ... Qualquer eu que eu
possa chamar de meu mesmo é um falso eu, um eu da imaginação possessiva.
Em última análise, o processo de aniquilação e de subsistência em Deus e o estado sereno, fixo e distanciado que dele resulta não significa não ter nenhum desejo do que é criado para desejar apenas Deus, nem significa não desejar absolutamente nada, mesmo Deus.
Em última análise, o processo de aniquilação e de subsistência em Deus e o estado sereno, fixo e distanciado que dele resulta não significa não ter nenhum desejo do que é criado para desejar apenas Deus, nem significa não desejar absolutamente nada, mesmo Deus.
Ele significa, isso sim, desejar a partir do
nada do eu e de Deus, desejar a partir daquela “cela de retiro” ou da “secret
clôture” onde nada criado pode entrar, onde se
pode desejar tudo com um desejo verdadeiramente divino, pois é desejo “sem um
porquê”.
Uma analogia apofática
Marguerite Porete e Ibn’Arabī falam de um auto-esvaziamento que se aproxima do nada, de uma abertura e de uma profundidade abissais cavadas na alma que permitem que Deus ali se instale.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī falam de um auto-esvaziamento que se aproxima do nada, de uma abertura e de uma profundidade abissais cavadas na alma que permitem que Deus ali se instale.
Já que Deus permanece para além de
todos os seres criados em Sua unidade absolutamente simples, a theosis
necessita do
abandono ou da aniquilação do eu e
do reconhecimento da pobreza ontológica humana.
Essa aniquilação
é expressa em termos de uma linguagem de “morte” dentro da prática de uma
antropologia apofática que se relaciona com o “desconhecimento” místico de
Deus.
É somente
quando sofro uma “morte” e não sou nada em mim mesmo, somente à medida que me torno dissimilar a qualquer
coisa é que me torno como o dessemelhante.
É essa prática de auto-abandono e de aniquilação que conduz à verdadeira vida com Deus, uma vez que é essa prática que realiza a unidade radical da alma com Deus, realização que depende da identidade do fundamento da alma e de Deus.
É essa prática de auto-abandono e de aniquilação que conduz à verdadeira vida com Deus, uma vez que é essa prática que realiza a unidade radical da alma com Deus, realização que depende da identidade do fundamento da alma e de Deus.
Porete e Ibn’Arabī retratam esse movimento na
direção do fundamento divino como um movimento de abandono e distanciamento em relação ao mundo
criado.
Para ambos, esse lugar mais
interno e profundo da alma, sua essência e fundamento, se encontra em uma região sem nome,
da qual todos os atributos e propriedades estão excluídos. Trata-se de um recesso oculto sobre o qual nada se pode dizer, exceto coisas
negativas: é atemporal, simples, sem movimento, despido de faculdades, sem
relação com as criaturas. Essa ausência de nome do fundamento da alma é
comparável à ausência de nome divina, já que o recesso interno do Ser divino
também se esquiva
de qualquer propriedade ou atributo que
possam ser afirmados sobre Ele.
Esse é um movimento necessário já que Deus permanece totalmente “dissimilado” ou distinto do plano criado e, portanto, inatingível à medida que se permanece ligado a ele.
Esse é um movimento necessário já que Deus permanece totalmente “dissimilado” ou distinto do plano criado e, portanto, inatingível à medida que se permanece ligado a ele.
Marguerite Porete diz que “onde
quer que eu penetre só encontro Deus”, Ibn Arabi diz: “Para onde quer que você se volte, lá está a face de Deus.”
Ibn’Arabī também deixa mais claro o aspecto fundamentalmente co-criador entre Criador e criatura.
Ibn’Arabī também deixa mais claro o aspecto fundamentalmente co-criador entre Criador e criatura.
Deus alcança a auto-consciência na e por meio da consciência
de Deus na criatura, que é uma teofania paradoxal.
Ao mesmo tempo, para ele, “toda a criação oferece um campo de aparição luminosa que torna manifesta a inacessível escuridão da Essência.”
Porete e Ibn’Arabī figuram a relação paradigmática com Deus não como uma “relação”, mas como um retorno à Origem auto-suficiente e fundamento do Ser, que Marguerite Porete chama de “nada” e à qual Ibn’Arabī se refere como dhāt ou essência, ankar al-nakirāt, “o mais indeterminado de todos os indeterminados”.
Ao mesmo tempo, para ele, “toda a criação oferece um campo de aparição luminosa que torna manifesta a inacessível escuridão da Essência.”
Porete e Ibn’Arabī figuram a relação paradigmática com Deus não como uma “relação”, mas como um retorno à Origem auto-suficiente e fundamento do Ser, que Marguerite Porete chama de “nada” e à qual Ibn’Arabī se refere como dhāt ou essência, ankar al-nakirāt, “o mais indeterminado de todos os indeterminados”.
Ambos formulam um eu que existia com a Deidade antes de toda
criação e assim, eternamente.
A
proposição que utilizam é a de que todos os seres criados existiam eternamente, mas
“virtualmente”, no conhecimento divino e só depois adquiriram “existência”
independente.
Eles estavam na Deidade antes mesmo de serem criados,
ou seja, antes de serem criados, eram incriados e, nesse sentido, naturalmente
divinos, pois em Deus nada é distinto de Deus.
Portanto, se a
existência na Deidade está além de qualquer distinção, na unicidade
indiferenciada da Deidade, ela não pode se distinguir da Deidade enquanto tal.
Desse modo, eles existiam na Deidade antes de Deus, no
fundamento mesmo de Deus, antes de suas criações.
Nessa existência que antecede a existência terrrena, a alma estava livre do contato com as criaturas e completamente distanciada.
A
preexistência da alma em Deus
representa uma espécie de pureza que ela deve recuperar, uma condição original que
ela tenta reconstruir.
Não ter nada significa
retornar ao estado no qual a alma era nada ou não-existente, no qual
ela permanece em sua causa primeira.
O retorno à
preexistência representa o enraizamento em um lugar onde Deus deixa de ser
Deus, isto é, o Criador.
A alma, por sua vez, deixa de ser uma criatura, à medida que regressa à sua origem primordial, ao estado que antecede a ordem, “Seja!”.
A alma, por sua vez, deixa de ser uma criatura, à medida que regressa à sua origem primordial, ao estado que antecede a ordem, “Seja!”.
Em outras palavras, a união
mística consiste em desfazer todo o processo de criação, em reverter
sua direção, em suplantar sua
direção em ambos os lados, de tal forma que não haja mais criatura e criador.
Há um movimento para “fora”, no sentido da manifestação, que antecede tanto a atualização e a concretização dos nomes divinos quanto antecede o fluir da própria Trindade e que possibilita a existência do mundo criado.
Há um movimento para “fora”, no sentido da manifestação, que antecede tanto a atualização e a concretização dos nomes divinos quanto antecede o fluir da própria Trindade e que possibilita a existência do mundo criado.
Posteriormente, há
um movimento de regresso, por meio do qual, exitus e reditus, a alma traça seu
caminho de retorno à sua origem primordial.
O primeiro movimento termina na criação, nas
criaturas, na distinção e na multiplicidade.
Nele é estabelecida a distinção entre a criatura e Deus.Nesse momento, Deus se torna Deus, o Deus
criador das crenças.
No regresso, a distinção entre “Deus” e as criaturas é
suplantada e a divisão é curada.
A criatura, aniquilando sua
identidade ilusória, se livra de seu aspecto criatural e regressa a seu fundamento primário na Deidade, onde não há nem Deus nem criatura, apenas o
abismo do Uno inominável.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī consideram que as criaturas em si não são nada, pois Ser é Deus.
Marguerite Porete e Ibn’Arabī consideram que as criaturas em si não são nada, pois Ser é Deus.
As coisas só existem através da existência de Deus.
Uma criatura não tem Ser –
tem apenas uma existência emprestada.
Ela só existe à medida que recebe o influxo divino e
é sustentada em Deus e por Deus. Isso não significa que as criaturas sejam
Deus, mas que são em virtude de Deus e que são absolutamente dependentes de
Deus. A teologia de ambos é tanto teocêntrica quanto antropocêntrica – Deus é Deus e o
homem é o homem – mas com a identificação do
fundo da alma com o fundo de Deus.
A vida da alma “liberada e clarificada” e a baqā’ do verdadeiro conhecedor é uma vida na qual a ação não parte de nenhum propósito externo – nem recompensas, nem castigos, temporais ou eternos.
A vida da alma “liberada e clarificada” e a baqā’ do verdadeiro conhecedor é uma vida na qual a ação não parte de nenhum propósito externo – nem recompensas, nem castigos, temporais ou eternos.
Absolutamente simples, desinteressadas e
distanciadas de todos os propósitos externos, de todo telos, ainda que o mais elevado, tais almas agem a partir da presença divina
dentro delas.
Como esse fundamento da alma, calmo e silencioso,
uma “cela de retiro”, como diz Ibn’Arabī, está removido do contato com as criaturas, ele está
retirado do plano do espaço e do tempo.
Nele há um “eterno agora” no qual a alma está
removida da seqüência dos “agoras” que constituem sua vida exterior.
Uma vez que Deus vive na eternidade, esse “eterno agora” é o lugar
de encontro no qual a alma e Deus residem juntos num único momento atemporal.
Na dialética mística de Ibn’Arabī o tema do waqt, o momento do eterno agora, está interligado ao mito do “suspiro do Compassivo” ou ao mito de criação, à metáfora do espelho polido e ao modelo do ser humano perfeito – insān kāmil. Na noção do waqt está contida a idéia da contínua destruição e recriação do mundo a cada momento, e a idéia de que os sufis são “filhos do momento”.
Na dialética mística de Ibn’Arabī o tema do waqt, o momento do eterno agora, está interligado ao mito do “suspiro do Compassivo” ou ao mito de criação, à metáfora do espelho polido e ao modelo do ser humano perfeito – insān kāmil. Na noção do waqt está contida a idéia da contínua destruição e recriação do mundo a cada momento, e a idéia de que os sufis são “filhos do momento”.
Para Ibn Arabi, em sua compreensão do momento eterno,
e em sua concepção perpetuamente transformadora da fanā, a cada
momento é preciso perecer, tornar-se uno com o divino na imagem
refletida e, então, desistir daquela imagem e perecer novamente, continuamente experenciando
união e separação, fanā e baqā, a extinção e a reconstituição dentro de uma
nova imagem, numa transformação
perpétua.
Contudo, embora a alma possua um fundamento incriado, ela é também criada e dependente do tempo.
Contudo, embora a alma possua um fundamento incriado, ela é também criada e dependente do tempo.
Tanto o criado quanto o incriado parecem coexistir no ser
criado.
A
disjunção que ocorre na percepção da condição humana parece ser o resultado de
uma “fratura na intimidade entre Deus e a alma” – a vontade e o
desejo criaturais para Porete, bem como o esquecimento, a ignorância e a ilusão de soberania para Ibn’Arabī.
Porém, embora a alma aniquilada não tenha mais um lugar, e o “povo de Yatrib” não tenha nenhuma estação, espelhando o Deus sem circunscrição em lugar ou tempo, o místico é ainda um ser que age no mundo.
Porém, embora a alma aniquilada não tenha mais um lugar, e o “povo de Yatrib” não tenha nenhuma estação, espelhando o Deus sem circunscrição em lugar ou tempo, o místico é ainda um ser que age no mundo.
Fica claro que não há em Ibn’Arabī o
quietismo e o contemptus mundi muitas vezes atribuídos aos místicos.
Dialeticamente, embora estejam fixos e em repouso, enraizados em sua origem
primordial, os conhecedores são capazes de acompanhar as transformações
incessantes das manifestações divinas e de fornecer a resposta apropriada para
as infinitas flutuações e situações externas.
Porete por sua vez, embora com
menos dinamismo, também sugere essa flutuação entre o repouso, a liberdade, a paz e a
permanência da alma aniquilada na corte divina e a sua ação no mundo,
quando se faz necessário.
Ainda que suas jornadas místicas sejam distintas, nem um nem outro
recomendam abandonar o mundo e permanecer em clausura para encontrar Deus.
Marguerite Porete, com seu desejo alinhado ao desejo
divino, dá à
Natureza o que é necessário, sem remorso de consciência, e Ibn Arabi
louva as
coisas do mundo como um sinal de Deus.
A orientação que fornecem é,
isto sim, quebrar
a concha das criaturas, permitindo que Deus de fato ocupe esse lugar vazio.
Ao atingir esse momento, suas ações e respostas às solicitações externas brotam
desse fundamento e não se originam mais de
suas próprias vontades, mas da vontade divina.
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