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segunda-feira, 7 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 8




                  Fanā e Baqā
       aniquilação e subsistência
Ibn’Arabī: A aniquilação (fanā’) é a aniquilação dele que não era, enquanto a subsistência (baqā’) é “a subsistência Dele que sempre foi”.

Aqui fica claro que a fanā’ sufi, em sua manifestação, não tem efeito ou ação negativos; trata-se da extinção de tudo contingente, de tudo o que não é Deus, seja na forma de ação, atributo ou essência, e que implica num estado em que o indivíduo tem um perfeito controle de si mesmo.
Dentro da terminologia sufi, a aniquilação é sempre aniquilação de algo, e o termo baqā’ é sempre a subsistência por meio de algo e é sempre superior à aniquilação, pois representa a vida com Deus, por meio de Deus, em Deus e por Deus.

Fanā’ e baqā’ são dois aspectos complementares de uma única e mesma experiência, na qual o Real é “visto” como permanecendo e o fenomênico como sendo extinto.
Fanā’ é característica de tudo que é “outro que Deus”; baqā’, de Deus somente.
Em cada um desses estágios um dos “véus” – i.e. as características do assim chamado mundo fenomênico tal como o conhecemos, tudo o que é chamado outro que Deus – é removido, e o místico é levado um passo mais próximo da Verdade.  
Quando todos os “véus” são levantados, a Realidade aparece em sua absoluta nudez, e a absoluta liberdade da alma é alcançada
Diz-se então que o místico chegou à sua meta, onde se encontra sua felicidade.  
Essa meta não é Deus, pois como poderia ser Deus, diz Ibn’Arabī, quando Ele é aquele que chegou à meta? 
A suprema felicidade do místico está em compreender, por meio da intuição mística, sua unidade essencial com Deus.

Já vimos que no sufismo em geral e para Ibn’Arabī em particular, o “conhecedor” é um servo ou, mais literalmente, um “escravo” (‘abd) e não um senhor, pois só Deus existe verdadeiramente.

Por conseguinte, ser um servo significa fundamentalmente uma situação ontológica, na qual a existência e os atributos da criatura são apenas emprestados por Deus.

A meta do “conhecedor” é portanto aniquilar todas as reivindicações de independência e se tornar o servo perfeito.
Ele luta por retornar a sua origem, o estado de não-existência, enquanto entidade imutável no conhecimento divino. 
Ele deve aderir ao seu próprio nada, ao fato de que, em ultima análise, ele permanece para sempre não-existente. 
Nada lhe pertence, exceto os atributos que manifestam a não-existência, o mal e a ignorância.  
Tudo o que manifesta o Ser pertence a Deus e para se proteger do orgulho ele deve fugir de todos os atributos ontológicos, já que são propriedade de Deus.

Ao compreender que não é nada em si, o místico compreende também que não há servo algum.

Ao ser unido ao Real (ittisal), o homem é aniquilado (fanā’) de si. Então o Real se manifesta de tal forma que Ele é sua audição e sua visão. Isso é o que é chamado um conhecimento do “provar”. O Real não é nada desses órgãos até que eles sejam queimados por Seu Ser, de maneira que Ele está lá, não eles.

O mesmo é verdade para todas as faculdades: O Real não será nenhuma delas até que Ele queime aquela faculdade, e Ele está lá, seja qual for a faculdade. Isso é indicado por Suas palavras, “Eu sou sua audição, sua visão, sua língua, e suas mãos”.  
Aquele que não testemunha e sente esse queimar em suas faculdades não tem ‘o provar’; é apenas uma sua ilusão (tawahhum).


Esse é o significado das palavras de Deus relativas aos véus divinos, “Fossem eles removidos, as glórias de Sua Face queimariam [tudo o que é percebido pela visão das criaturas].”

A meta final e o derradeiro retorno dos gnósticos – embora suas entidades permaneçam imutavelmente fixas –é o Real ser idêntico a eles, enquanto eles não existem ... Portanto o gnóstico é conhecido apenas por meio do fato de que ele junta os opostos, pois tudo dele é o Real.

Essa consciência da Unidade da Existência, o conhecedor consegue apenas ao ser “aniquilado” e ao se encontrar totalmente imerso em Deus. 
Nesse sentido, a aniquilação é essencial para que ele se transforme no “interior” do Real e de lá veja a realidade de todas as coisas por meio do “provar imediato”. 
Al-fanā’ é o mais elevado dos estados, enquanto al-baqā’ é o mais elevado dos domicílios.

Ibn’Arabī, como outros sufis, vê a aniquilação como um processo gradual, com vários estágios.
Em geral três graus se distinguem aqui: a fanā’ dos atributos, da essência e dos atos.
Na aniquilação dos atributos, o místico sofre a aniquilação de todos os seus atributos humanos e, em seu lugar, assume como seus os atributos divinos. Na aniquilação de sua “essênciana Essência Divina, ele compreende ser uno com o Real. 
Aqui o místico compreende a não-existência do seu eu fenomênico e a subsistência daquilo que é sua essência imutável e não-perecível. 
O outro estágio corresponde ao que mais freqüentemente é conhecido por baqā’, o estado de subsistência, em que de certa forma o místico recupera o seu eu que foi aniquilado
Porém, ele o recupera não em si mesmo, mas no seio da Essência Divina.  
Em sua consciência iluminada não há mais nenhum vestígio de seu antigo eu pessoal
Após ter sido extinto, ele agora subsiste na Essência Divina e portanto, não é ele que existe, mas o Real em si.  
O que quer que ele faça, não é mais ele que o faz, é Deus. 
Isso corresponde à aniquilação de suas ações nas ações de Deus. Contudo é importante frisar que para cada grau de fanā’ corresponde um grau de baqā’, no qual o fenomênico perece e o que permanece é o Real.

... Tu podes dizer: “Bem, então a aniquilação retorna à servidão e se agarra a ela.” Nós respondemos: A aniquilação não pode ser como a servidão, já que a servidão é um atributo imutavelmente fixo que nunca é erguido da existência criada. Mas a “aniquilação” pode aniquilar o servo de sua servidão e de si mesmo. Conseqüentemente, sua propriedade difere da propriedade da servidão.

Não há ninguém nos céus e na terra que não venha para o Todo-Misericordioso como um servo.”

Para Ibn Arabi o “conhecedor” é um servo e não um senhor, pois apenas Deus possui o atributo do Ser, enquanto que o atributo do servo é a inexistência.  
O servo perfeito é aquele que realiza seu próprio nada, entra na presença de Deus em seu nada e retorna iluminado.  
Por meio da aniquilação, atributo que depois desaparece, o servo retorna e subsiste no estado original de sua entidade imutável, um estado anterior à criação. 
Em seu relato da viagem contemplativa ascensional até Deus, Ibn’Arabī se refere ao momento posterior à visão do “primeiro intelecto”, quando o viajante é aniquilado e depois retorna, subsistindo em Deus como o conhecedor perfeito:

E se tu não paras nisso, tu és erradicado, e removido, então extinto, e aniquilado, e obliterado.
Quando os efeitos da erradicação e do que se segue terminam, tu és afirmado, então és tornado presente, e feito permanecer, então és animado, e designado. E os mantos de honra que [teu grau] requer são conferidos a ti, e eles são muitos.
Ao atingir a mais alta estação, a “Estação de Nenhuma Estação”, o conhecedor manifesta então o nome Allah que não designa nada específico, mas tudo, do mesmo modo que o homem perfeito não é nada específico, já que ele é todas as coisas.
Nessa estação ele não se encontra mais delimitado por nada.

No auge desse estado espiritual, a consciência do conhecedor perfeito é idêntica à consciência divina que ainda não começou a se dividir em uma infinidade de determinações. Esvanecido e perdido na contemplação do divino, o conhecedor não sabe mais quem ele é:
Quando o servo é despojado de todos os seus nomes, não lhe resta mais que sua essência sem qualidade e sem nome. 
Então ele é um dos Culpados (malāmiyya) ... Nada se manifesta nele, através dele, que não seja Deus.

A perplexidade é uma característica fundamental
do conhecedor
, e essa perplexidade não significa que ele esteja perdido, mas sim, que se encontrou. Ele não é nada, mas ainda assim é tudo, libertou-se de todas as delimitações, mas é capaz de assumir todas elas, é conhecido e desconhecido, afirmado e negado, existente e não-existente, Ele/não-Ele. 
Seu “lugar” é também paradoxal, é um “lugar” ao mesmo tempo de infinitas flutuações e de uma serena fixidez.

Na visão da Tribo, “lugar” é uma estação no tapete de Deus e pertence ao Povo da Perfeição, que foi além das estações e dos estados, da majestade e da beleza. Eles não têm nenhum atributo, e nenhuma estação como Abū Yazīd.

... Eles estão perpetuamente em equilíbrio, fixidez e repouso. Contudo, eles têm movimentos rápidos em sua dimensão interna a cada respiração. “Tu verás montanhas, que supunhas serem fixas, passando como nuvens” .

... Portanto eles permanecem entre a não-delimitação e a delimitação. Nenhuma estação determina suas propriedades, pois não há nenhuma ... Em relação ao seu rank eles passam por uma variação constante, e em relação ao seu lugar eles estão fixos.

A theosis da alma e o estado de preexistência.

Tanto a obra de Porete quanto o sufismo de Ibn’Arabī apresentam uma versão da identidade última da alma com Deus. 
Em certo sentido, o fundo da alma é tão idêntico ao fundo de Deus que existia com a Deidade antes de toda a criação e, assim, eternamente
Em suas teologias místicas há um aspecto de unificação com o Deus que é absolutamente, simplesmente uno.
Esse momento unificador equivale à theosis ou deificação da alma e requer um movimento que efetua a remoção ou negação de todas as imagens e conceitos relativos ao divino.

Para Marguerite Porete, a aniquilação representa a libertação das limitações do ser criado e seu retorno a um estado de preexistência, sugerido por Amor e pela Alma ao longo do Miroir, já que Deus amou a alma desde sempre. Quando a autora expressa os pedidos da alma, ela diz:

A primeira coisa que ela pede é se ver sempre (se é que ela vê alguma coisa) lá onde ela estava quando, do nada, Deus fez tudo, e assim estar certa de que ela não é outra coisa que isso – quando ela é – eternamente ..

Esse ponto é explicitado no penúltimo capítulo, em que Porete descreve a transformação da alma de sua natureza tripla até a absoluta simplicidade da união com Deus como um retorno ao seu “primeiro ser”.  
Despojada de tudo, a alma “sem ser” é reconduzida para lá “onde estava antes de ser”.

Para Porete, o longo caminho do país das virtudes ao país dos esquecidos e aniquilados resulta no retorno à pura passividade e à receptividade da alma em seu estado pré- criado, na origem de toda criação e da Trindade. 
Ao aniquilar sua vontade e “cair” no nada e no momento da clarificação divina, a alma não tem nenhum porquê, pois “a verdadeira liberdade não tem nenhum porquê” e reflete o ato da Deidade de dar sem um porquê.
Essa noção está ligada à noção de Deus como uma causa absolutamente livre, um fundamento do ser que não tem um fundamento externo a si. Sendo o começo e o fim de todas as coisas, Deus não tem um “porquê”, é um porquê, de tudo e para tudo. A alma está assim tão livre de seu desejo criado como quando não era nada. Ao cair no nada, a alma reencontra sua identidade divina e por meio dessa unificação sem distinção, ela se torna o lugar no qual o divino opera no mundo.

A aniquilação da alma que dá lugar à obra da “nobre centelha” leva essa alma para uma “preciosa clausura”, onde, clarificada, ela repousa em amor e paz. 
Porete coloca o território do nada num lugar para o qual se pode ir, mas que é tanto nenhum lugar como todo lugar.  

A alma que é totalmente liberada e aniquilada não tem nenhum lugar próprio, é reconduzida para a corte longínqua de Deus, onde estava antes de vir da bondade divina, para o doce país onde ela encontra seu lugar e seu verdadeiro ser no divino.
Para Ibn’Arabī, a meta que o místico deve alcançar é o estado no qual ele é “como ele era quando ele era antes de ser.”. Essa meta se baseia na teoria de um sufi anterior a ele, Sahl al-Tustari, na qual esse estado pré-criado era identificado a uma passagem corânica na qual as almas preexistentes da humanidade prometem submissão a seu Senhor.

Como já vimos, na fanā’ e baqā’, o conhecedor compreende sua não-existência essencial e assim retorna ao estado original de sua “entidade imutável”. 
Esse termo designa, as criaturas tal como encontradas em Deus “antes” ou “depois” de sua existência no cosmos. De maneira ambígua, cada criatura que Deus ainda não levou à existência é não-existente, embora exista de certa forma como um objeto no conhecimento divino.  
  
Ela é “encontrada” em Deus e Ibn’Arabī as chama “objetos do conhecimento de Deus” ou “coisas não-existentes” ou “entidades imutáveis”. Contudo, ainda que passem a existir (ou a serem encontradas) no cosmos, essas coisas nunca deixam o conhecimento divino, sendo ao mesmo tempo um “objeto não-existente de conhecimento”. As coisas ou entidades imutáveis nunca mudam, tal como o conhecimento divino nunca muda. Deus as conhece por toda a eternidade. Falando sobre o servo perfeito, Ibn Arabi diz:

... O exílio do gnóstico de sua terra natal é sua partida de sua possibilidade. A terra natal da coisa possível é a possibilidade. Então é desvelado para ela que ela é o Real. Mas a terra natal do Real não é a possibilidade. Então a coisa possível parte de sua terra natal em virtude desse testemunhar. 
Quando a coisa possível estava em sua terra natal, isto é, a não- existência – embora sua entidade estivesse imutavelmente fixa – ela ouviu a fala do Real para ela, “Seja!”, e então correu a adentrar na existência. 
Por conseguinte ela foi de sua terra natal para o exílio a partir do desejo de ver Aquele que lhe disse “Seja!”  
Quando ela abriu os olhos, o Real fez com que ela testemunhasse suas próprias semelhanças entre as coisas temporalmente originadas.  
Ela não testemunha o Real, por quem adentrou correndo na existência. ...

Mas os conhecedores perfeitos não têm nenhum exílio.
Eles são entidades imutavelmente fixas em seus lugares; nunca deixam sua terra natal. Já que o Real é seu espelho, suas formas se tornam manifestas dentro Dele, exatamente como as formas se tornam manifestas num espelho. Essas formas não são suas entidades, já que as formas se tornam manifestas de acordo com a forma do espelho. ...

... Eles são o povo do testemunhar (shuhūd) na existência (wujūd). Eu apenas adscrevo existência a eles em virtude da origem temporal das propriedades que não se tornam manifestas exceto num ser existente (mawjūd). 
Portanto o nível do exílio não é uma das estações dos Homens ... Os grandes (al-akābir), eles nunca vêem nada fora de sua terra natal.

Num sentido amplo, a jornada espiritual descreve uma progressão linear no tempo que pode simultaneamente ser vista como um constante processo de retorno à origem e de recriação a cada “nova respiração”.
O resultado do processo da fanā’ e baqā’, a aniquilação e a subsistência em Deus, é semelhante ao processo de “descriação” ou do retorno ao estado incriado e, ao mesmo tempo, à possibilidade de fluir na “existência” de acordo com a nova revelação de Deus a cada instante.
Ibn’Arabī explica que o significado do comando relatado no Corão, “Seja!” , e aquilo é, não significa que as coisas adquiram existência, mas sim que aquilo que ouve o comando adquire a propriedade de ser um lugar de manifestação.

De onde nosso Senhor veio a ser antes que Ele criasse a criação?”, e a resposta do Profeta, Ele veio a ser numa nuvem, sobre a qual e sob a qual não havia nenhum ar”. 
Essa vacuidade ou vazio, a Nuvem, em que não há nenhuma criação e ainda assim onde a criação toma forma, pode ser compreendido tanto como uma explicação metafísica quanto como uma realidade experiencial. 
Ele se refere a Deus e, à medida que o servo perfeito não é outro que Deus, se refere ao estado no qual ele estava antes de ser criado. 
Em última análise, a metáfora do coração polido para Ibn’Arabī aponta para o retorno a esse centro quieto, vazio e totalmente receptivo, o mesmo vazio no qual a criação acontece, a terra natal do conhecedor
O coração distanciado e esvaziado torna-se uno com Deus e com a “Mente Divina” na qual estão contidos todos os exemplares que precedem a existência das coisas no espaço e no tempo, e assim o “conhecedor” torna-se uno também com o seu próprio exemplar, com sua imagem que precede a criação e que, portanto, não é diferente de Deus.

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