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sábado, 5 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 7

 

ANIQUILAÇÃO E UNIÃO 



Estágios e estações na jornada mística 
 

Em todas as tradições, o momento final da jornada mística, a união com Deus, é a culminação de um itinerário espiritual que, de acordo com a tradição envolvida, depende ou não da iniciação de um mestre, tem diferentes fases e estados que são incorporados à consciência ou ao estado de ser do sujeito como conquistas definitivas, ou superados e deixados para trás no caminho de elevação da alma.

Os sete estágios da alma de Marguerite Porete

No primeiro estágio, no qual a alma se detém por algum tempo, a alma tocada por Deus busca com todas as suas forças obedecer aos mandamentos da lei divina. 
A alma ama porque esse é um mandamento divino. Contudo, se ela tem um coração “pequeno” e lhe falta a “nobre coragem”, ela não se elevará e não encontrará Deus.

No segundo estágio, a alma reflete sobre o que Deus aconselha a seus amigos especiais, o que difere de seus mandamentos. 
Aqui, a alma tenta abandonar a criatura que há nela, por meio de obras que mortificam sua natureza e do desprezo por riquezas, prazeres e honras, para atingir a perfeição aconselhada nos evangelhos, cujo exemplo é Jesus Cristo. 
Nesse estágio, a alma não lamenta a perda do que tem.

No terceiro estágio, a vontade e o amor da alma ainda estão ligados às obras de bondade e a alma começa a considerar o martírio que representaria o abandono de tais obras
Esse estágio é mais difícil que os anteriores, pois “é mais difícil derrotar as obras da vontade do espírito do que derrotar as obras da vontade do corpo ou fazer a vontade do espírito.”
Nesse estágio se inicia o processo do sacrifício das virtudes e das obras, que a alma ama ternamente, mas que distorcem sua percepção das prioridades espirituais, “pois nenhuma morte seria martírio (para a alma no terceiro estágio) exceto a abstenção das obras que ela ama, a delícia de seu prazer e a vida da vontade que disso se nutre.

Porete considera a servidão às obras e às virtudes como empobrecedora. 
Já no início do livro, a alma nobre e aniquilada conta como foi libertada dessa servidão por cortesia do amor. 
Porém, é só ao passar pelo quarto estágio que a alma abandona completamente a obediência às obras e às virtudes. 
Esse estágio, que já mencionamos anteriormente, é decisivo e traiçoeiro na jornada de elevação da alma. 
Aqui a alma se encontra submersa na contemplação de Deus e nas delícias e doçuras do amor divino, o que a faz acreditar ter atingido o ápice de sua jornada. Inebriada pelo brilho do amor e tendo deixado para trás as coisas do mundo, a ascese, as obras e as virtudes, livre de ansiedade, a alma atinge o que lhe parece representar a perfeição humana. 
Contudo, ainda não abandonou a vontade do eu e do espírito que a guiou nesses primeiros estágios.  
A alma deve morrer para o espírito e para o eu a fim de se mover desse estágio para a vida verdadeira do quinto e do sexto estágios.

No quinto estágio
, a alma considera que só Deus é, e que todas as coisas só são por Ele; ela por si não é
A alma vê que Deus é a bondade total que colocou nela uma vontade livre, nela que não é exceto como “maldade total”.
 Ela, que é a “maldade total”, ao aniquilar a sua vontade, recebe de Deus a vontade livre do ser divino
Essas percepções elevam a alma, e a percepção da luz divina a arrebata e nela resplandece.
Ela compreende que só pode ser ao se separar de sua vontade própria, que a reduz a menos que nada.
Esse estágio é o lugar mais baixo, um abismo de pobreza e de humildade ou simplesmente um “vale”. Em essência, a alma deve atingir o fundo antes de ascender.
Dessa maneira, ela retorna a seu estado original, sem reter nada de si, e passa a realizar a perfeita vontade divina.  
Ela é transformada na natureza do amor por esse dom que nela opera e não precisa mais lutar contra a sua natureza.
É nesse estágio que a alma cai do amor no nada, sem o qual ela não pode ter tudo.
Todo o orgulho e o sentimento de amor possessivo do quarto estágio são eliminados.

Até esse momento, a metáfora espacial da ascensão mística é consistente, porém aqui há uma súbita inversão, e a ascensão é mostrada como uma queda, pois a alma “cai” das virtudes no amor e do amor na aniquilação e na liberdade.  
Em contraste com os que permanecem no quarto estágio, da vida do espírito, e que lutam com sua sensualidade e com sua vontade.

Os que atingem o quinto estágio são levados em êxtase até o sexto, onde não permanecem, retornando ao quinto, onde permanecem.
No sexto estágio, é completada a aniquilação.  
Nele, a alma não vê mais a si mesma, nem vê Deus. 
É Deus que se vê nela por sua majestade divina. 
O espelho torna-se absolutamente cristalino, pois a alma, agora liberada e iluminada, é somente o que Deus é. “Deus se vê por si mesmo nela, por ela, sem ela,” pois não há nada fora dele.
A alma aniquilada realiza, sem o trabalho de sua vontade, a glória eterna de sua existência dentro da Trindade e da Trindade dentro dela, retornando à sua origem e “lá” se estabelecendo, embora continue a se mover segundo a vontade de Deus.

Periodicamente, tais almas são levadas em êxtase pela Trindade para uma “visão” de absoluta paz e glória, um vislumbre do que a alma desencarnada irá usufruir eternamente no sétimo estágio
Esse estágio de glorificação, só quando a alma deixa o corpo é que podemos atingi-lo.

A alma serve às virtudes até que as ultrapasse e não tenha mais necessidade delas, e então a situação se inverte. 
 Aniquilada e perfeitamente alinhada com a vontade divina, a alma pertence agora a Deus e não às virtudes. 


Estados e estações no sufismo de Ibn’Arabī

No sufismo, de maneira geral, a t)arīqa, ou o caminho, tem um simbolismo baseado na noção de passagem, itinerário e peregrinação. Nele, o sufi vagueia por diferentes estações (maqâmat) até que gradualmente atinja a tawh(īd perfeita, a confissão existencial de que Deus é um. O iniciado começa a distinguir os diferentes estados (h(âl) e estações pelos quais deve passar.
O estado é algo que vem de Deus para o coração humano, sem que o homem, por meio de seus esforços, seja capaz de repeli-lo ou de atraí-lo quando ele se vai. 
as estações representam um estado permanente que o homem alcança, até certo ponto, por seus próprios esforços
Pertencem à categoria dos atos, enquanto os estados são dons da graça.

As estações representam os graus pelos quais se deve passar para a aquisição de um novo nível do ser ou os diferentes graus de consciência necessários para a transformação do ser
De certa forma, elas definem os diferentes estados que o viajante obteve em sua disciplina ascética e moral. Espera-se que ele cumpra as obrigações que pertencem às respectivas estações. Por exemplo, ele não deve agir na estação do respeito como se estivesse ainda na estação do arrependimento e também não deve deixar a estação na qual se encontra, antes de cumprir todos os seus requerimentos.
Os estados que lhe advêm variam de acordo com a estação na qual ele está no momento
Assim, a qabd (contração - significa a compressão da alma, um deserto opressivo de solidão no qual o místico permanece dias e por vezes, meses de sua vida,pode ser comparada à “noite escura da alma”, a partir da qual a luz da experiência unitiva pode subitamente surgir, como o “sol da meia-noite”.) de alguém na estação da pobreza é diferente da qabd de alguém na estação do anseio.

Há várias estações classificadas, mas os passos principais são sempre o arrependimento, a crença em Deus e a pobreza, que conduzem ao contentamento, aos diferentes graus do amor ou à gnose, de acordo com a predileção mental do viajante.

Para entrar no caminho espiritual, o adepto (murīd) precisa sempre de um guia para conduzi-lo pelas diferentes estações e para sinalizar o caminho que conduz à meta. 
O adepto é submetido a vários testes que exigem uma confiança absoluta em seu mestre.  
No sufismo, sempre foi e ainda é uma regra a existência de uma afinidade preestabelecida entre mestre e discípulo. Muitos sufis vagueiam anos através do mundo islâmico em busca de um mestre a quem possam se render totalmente.

O mestre observa todo o crescimento espiritual do discípulo, interpreta seus sonhos e visões, lê seus pensamentos, seguindo todos os movimentos de sua vida consciente e subconsciente. Sob a direção do mestre, o murīd pode prosseguir nas estações do caminho. O mestre lhe ensina como se comportar em cada estado mental e prescreve períodos de reclusão, se necessário. 
É amplamente difundido o fato de que os métodos não podem ser iguais para todos e que o líder místico genuíno tem que possuir uma grande compreensão psicológica, para reconhecer os diferentes talentos e as diferentes personalidades de seus discípulos e treiná-los adequadamente. 
Assim, dada a diversidade de caráter e as diferentes capacidades individuais dos homens, os sufis dizem que há tantos caminhos individuais quanto o número de homens que buscam Deus.

Todavia, os sufis classificaram os estados psicológicos e espirituais particulares que os viajantes experimentam em várias categorias, geralmente como pares de opostos. De acordo com a raiz citada, os estados são por definição efêmeros e, para Ibn’Arabī, são um sinal de imaturidade e instabilidade
Para Ibn Arabi, os verdadeiros mestres vão além das propriedades dos estados, sempre mantendo a “cabeça fria” não importa o que estejam experimentando internamente, ampliando sua capacidade de receber esses estados de tal forma que não sejam afetados por eles
Os mestres viajam dentro das estações, que são adquiridas permanentemente e não possuem a natureza instável e flutuante dos estados.

Um estado é para você estar subsistente ou aniquilado, sóbrio ou embriagado, concentrado ou disperso, ausente ou presente ... Foi também dito que o estado é a mudança de atributos do servo. Uma vez que eles se tornem estabelecidos e fixos, isso é uma estação.

Em ambos os sentidos técnicos do termo, Ibn’Arabī entende que os estados apresentam certos perigos para a pessoa que os experiencia. Ainda que sejam graças divinas, há sempre o risco de levá-los muito a sério, de acreditar tê-los merecido e se tornar orgulhoso, perdendo o equilíbrio mental.         
Por isso, raramente fala dos estados como positivos, mas sim como testes que o viajante deve enfrentar. 

Quando os viajantes são tomados por estados, eles se tornam como loucos, e como resultado não mais respondem à Lei (enquanto experienciam o estado). Portanto, eles perdem muito do bem.
Por essa razão, nenhum dos grandes (al- akābir) jamais busca estados. Eles buscam apenas estações.
 
Quando o amante de Deus possui conhecimento, ele é mais completo nesse aspecto do que no fato de que ele é possuidor de um estado.
Neste mundo um estado é uma imperfeição (naqs), enquanto que no próximo mundo ele é uma perfeição (tamān).  
Mas uma estação é uma perfeição neste mundo, enquanto que no próximo mundo ela é uma perfeição mais perfeita.

Já vimos que enquanto os estados ou a situação espiritual presente do indivíduo é transitória, as estações, que podem ter os mesmos atributos dos estados, representam uma qualidade fixa da alma, são aquisições permanentes que não se perdem quando o murīd alcança estações mais elevadas
Os sufis, de maneira geral, aplicaram o termo estação às atitudes espirituais, tais como o despertar, o arrependimento, a recordação, a tristeza, a esperança, a sinceridade, a constância, a paciência etc.

No caminho místico, certos sufis enfatizam os benefícios da “renúncia” ou do “ascetismo” (zuhd). Ibn’Arabī porém considera a renúncia útil apenas nos primeiros estágios do caminho, já que não a vê como um sinal de perfeição. Em sua visão, para renunciar a este mundo é preciso renunciar às causas secundárias (asbāb), que são nosso meio de conhecer Deus. 
A afirmação “ter renunciado a tudo exceto a Deus serve a um propósito retórico e sinaliza a direção a ser seguida, mas tal renúncia é impossível e indesejável, já que renunciar ao cosmos é renunciar à possibilidade de aumentar o conhecimento de Deus.

Renúncia às coisas pode ocorrer apenas por ignorância e falta de conhecimento daquele que renuncia e através do véu que cobre seus olhos, isto é, a falta do desvelar e do testemunhar ... Se ele soubesse ou testemunhasse o fato de que o cosmos inteiro fala glorificando e louvando o seu Criador e que O testemunha, como poderia ele renunciar ao cosmos, à medida que ele possui esse atributo?

Da mesma maneira, para Ibn’Arabī, a prática espiritual do retiro ou reclusão do mundo para uma cela ou qualquer outro tipo de lugar isolado, associada ao ascetismo, pode ser útil como um meio de aproximação de Deus, mas não é importante em si mesma
Em sua doutrina da unidade da existência, não há nada na existência senão Deus e uma vez que a estação espiritual do retiro seja alcançada, ela não mais se apaga.

A jornada ascensional dos místicos sufis pode ser ainda vista sob outro ângulo. 
Eles localizam a união mística no cume da ascensão cujo modelo paradigmático é a Mi’rāj de Muhammad, a jornada noturna através das sete esferas até o trono divino
O mesmo cosmos mítico foi apropriado pelos sufis, e a jornada até o trono divino tornou-se um paradigma da jornada em direção à união mística. 
Tomando por base a sua jornada, Ibn’Arabī aconselha ao viajante que evite parar em qualquer nível da ascensão
Após receber os segredos dos mundos mineral, vegetal e animal, o sufi passa progressivamente por estágios mais intensos, dos momentos de terror em que as formas fixas da realidade delineada se fundem umas nas outras, à ternura e compaixão por todas as coisas. 
O prelúdio à “união” é a aniquilação, o mais elevado dos estados, a visão do seu eu pré-criado e o reconhecimento do seu Senhor.

Aniquilação – Fanā e Baqā: uma antropologia apofática

Deus (al-h*aqq: a Realidade Suprema) – seja Ele exaltado! – me disse, “Tu sabes quem és?” Eu respondi, “Sim, eu sou o não-ser que é manifestado através da Tua manifestação; eu sou a escuridão que a Tua luz ilumina.”

A aniquilação é a maneira de atingir aquela profundeza sem nome e sem aspectos dentro do eu que é idêntica à da Deidade e que é também, de uma outra forma, a própria identidade. Como resultado da aniquilação do eu ilusório, os místicos adquirem um outro senso de identidade, retratado na vida clarificada de Porete e na baqā’ de Ibn Arabī. 



A alma aniquilada e a vida clarificada em Porette

Para Marguerite uma alma aniquilada é : Uma Alma que se salva pela fé sem obras, que é apenas no amor, que nada faz por Deus, que nada deixa de fazer por Deus, a quem nada pode ser ensinado, de quem nada pode ser tomado nem dado e que não possui nenhuma vontade.

Tal alma passou por sete estágios marcados por três “mortes: a morte para o pecado, no primeiro estágio, a morte para a natureza, no segundo, e a morte para o espírito, que ao aniquilar a vontade, libera a alma e a leva para o nada onde ela e Deus se encontram. 
Esse nada permanece além e acima do alcance da razão, é alcançado apenas através de um amor totalmente consumidor, mas essa aproximação marca uma impossibilidade, à medida que a alma nunca pode estar ela mesma presente em tal amor.

Ao mencionar os doze nomes dados por Amor à alma aniquilada, Porete diz: “Seu derradeiro nome é Esquecimento”
Este é seu nome apofático, que aponta para a perda de todos os nomes, para o nada onde a alma se relaciona com Deus pois “essa Alma, diz Amor, tem seu nome correto no nada no qual repousa. E já que ela é nada, não se preocupa com nada, nem consigo mesma, nem com seus vizinhos, nem mesmo com Deus ... E esse nada, do qual falamos, diz Amor, lhe dá tudo...”

Porém, ainda que Marguerite Porete pressuponha uma espécie de “santa indiferença” passível da acusação de quietismo, à medida que a alma e o divino são unos, a alma passa a ser o lugar onde Deus opera no mundo.

Se essa alma, que está sentada tão alto, pode ajudar a seus próximos, ela os ajudaria com todo seu poder em sua necessidade.... E se essas almas tivessem alguma coisa ... e se soubessem que outros teriam mais necessidade que elas, elas não a reteriam de forma alguma, ainda que estivessem certas de que a terra nunca mais traria o pão, o trigo ou outras subsistências. Tal é sua natureza por pura justiça, e essa justiça é a justiça divina, que a essa alma deu sem medida.

A alma aniquilada de Porete, que “morreu de amor”, encontra Deus quando “perde” tanto a si mesma quanto a Deus e nada mais ama exceto por meio do amor de Deus.

Tal alma não ama mais em Deus coisa alguma e nem amará, tão nobre é ela, senão somente por Deus e porque Ele o quer; e (ama) Deus em todas as coisas, e as coisas pelo amor dele.
E por tal amor essa Alma está somente no puro amor do amor de Deus.  
Seu conhecimento é tão claro, que ela não vê nada em Deus e Deus nada vê nela.

Para Marguerite Porete, a alma aniquilada nada mais busca.  
Ela compreende que qualquer coisa criada que acreditava possuir nunca foi verdadeiramente dela, pois não há nada senão Deus
Ela é tão pobre e cai tão fundo no abismo da humildade que “nada sabe”, “nada quer” e “vive sem um porquê”.  
Embora ela não tenha perdido seus sentidos e seu corpo, de certa forma perdeu o uso que fazia deles, pois essa alma:
.. está morta para todos os sentimentos de dentro e de fora, à medida que tal alma não realiza mais nenhuma obra, nem por Deus nem por ela, e assim a todos os seus sentidos perdeu nessa prática a ponto de não saber como buscar ou encontrar Deus, nem como a si mesma conduzir.

...Essa Alma não se importa nem com vergonha nem com honra, nem com pobreza nem com riqueza, nem com alegria nem tristeza, nem com amor nem com ódio, nem com inferno ou com paraíso ... E com isso se diz que essa Alma tem tudo e não tem nada, que ela sabe tudo e não sabe nada, que ela quer tudo e não quer nada ...

Nem os dons de Deus nessa vida ou as recompensas e castigos na outra podem intimidar ou atrair essa alma:

... Quem quer que pergunte a essas Almas livres, seguras e pacificadas, se elas iam querer estar no Purgatório, elas diriam que não; se elas iam querer estar nesta vida certas de sua salvação, elas diriam que não; ou se iam querer estar no paraíso, elas diriam que não. 
Mas então, o que elas quereriam? Elas não têm mais nenhuma vontade. E se elas quisessem alguma coisa, se separariam do Amor.

A aniquilação é necessária para expandir o espaço onde o Amor passará a estar e como um processo que transforma a vontade e o conhecimento em nada, libera a alma e permite que Deus seja de fato Deus.

Ele é, diz essa Alma, e nada lhe falta; eu não sou e portanto nada me falta; e assim Ele me deu paz e vivo apenas da paz, que nasceu de seus dons em minha alma.A aniquilação pela unidade do direito divino tem esse poder.

A aniquilação para Marguerite Porete desfaz a alma de si mesma, deixando-a sem fala e sem nome, desfazendo-a também de Deus, que similarmente é também inominável. 
Ela consome a alma no “fogo da caridade”, oferecendo-a em holocausto. Após a deflagração desse fogo, o que permanece são apenas cinzas daquilo que uma vez foi nomeado, mas que agora se encontra dissolvido no abismo de um oceano sem nome.

Já vimos que quando a alma, criada para desejar a vontade divina, atinge a aniquilação, Deus se vê na alma como num espelho
Essa “clarificação”, que permite que Deus se veja na alma, representa o ápice da aniquilação e seu corolário.
Seguindo-se à dissolução do sujeito humano, a “morte” mística figurada como aniquilação tem como seu reverso indissolúvel a vida simples e clarificada da alma nobre e gentil que, tendo se tornado o espelho sem mácula de Deus, agora repousa em paz.

A linguagem dessa vida vivida no divino é o silêncio secreto do amor divino. Ela aqui chegou depois de um longo tempo, se assim quis por um longo tempo. Não há mais aqui outra vida do que sempre desejar a vontade divina.
O estado da vida aniquilada e clarificada está, por definição, além da descrição humana. Ainda assim, para descrevê-lo, Marguerite escolhe metáforas que privilegiam a permanência em oposição à mudança, o repouso em oposição à busca incansável, e metáforas que descrevem a nudez e a liberdade em oposição ao velamento e ao aprisionamento, que se referem à paz, à suficiência, à nobreza e à generosidade (largesse), pois ela habita e repousa no desejo divino. Falando da vida da alma “clarificada”, Porete diz: 
Eu a chamo clara pois ela ultrapassa a cegueira da vida aniquilada. 
Ela não sabe quem ela é, nem Deus nem humanidade; pois ela não é; Tal Dama não mais busca Deus. 
Ela não tem “de quê” (de quoy), e não tem que fazê-lo.  
Ele não lhe falta; portanto, por que ela o buscaria? 

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