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sexta-feira, 4 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 6



Ibn’Arabī e a compaixão divina criadora 

A “Nuvem”, “Amā”, recebe todas as formas e ao mesmo tempo dá aos seres as suas formas, efetivando a diferenciação dentro da realidade primordial do ser, que termina na diversidade do mundo empírico. Como tal, o “Suspiro do Compassivo” ou a “Nuvem” é imaginação ilimitada absoluta. “Tanto o termo nuvem quanto o termo imaginação chamam atenção para o esvaecimento de toda existência criada.”

A partir da inescrutável profundidade da Deidade, surge a tristeza que pede esse Suspiro de Compaixão, Nafas Rah'mānī. 
Esse suspiro da compaixão divina expressa “a pathos divina, libera os nomes divinos, emancipa os seres de sua virtualidade na qual estavam confinados e estabelece o pacto de ‘simpatia’ que une a Deidade e seu servo num diálogo compassivo.”

A concepção de Ibn’Arabī dos atos da eterna cosmogonia: um Ser divino só em sua essência incondicionada, do qual conhecemos apenas a tristeza da solidão primordial que O faz ansiar por ser revelado em seres que O manifestam para Ele, à medida que Ele se manifesta para eles.
O leitmotif da criação é uma tristeza fundamental
Em outras palavras, a origem é determinada pelo Amor, que implica um movimento de desejo ardente por parte daquele que ama. Esse desejo ardente é aplacado pelo suspiro divino.

A noção de abismo
A jornada mística é muitas vezes descrita como uma progressão cada vez mais profunda da alma na escuridão divina. 
Nessa espécie de “morrer antes de morrer” ou desconstrução que ocorre, a alma se liberta das construções teológicas para descobrir outra verdade que desafia a verbalização.

Mesmo que Marguerite Porete não identifique Deus explicitamente com o abismo, ainda assim, o abismo da alma é o lugar onde Deus se vê, pois “Quando tal nada é, então Deus se vê em tal criatura, sem nenhum impedimento de sua criatura” e, se ele se vê nessa alma, ele é esse abismo na forma de uma identidade que se fundiu ou, em outras palavras, “o abismo do qual invoco a Deus é o mesmo abismo do qual ele me chama.”

Para Ibn’Arabī o conhecedor só atinge a perfeição, quando, incapaz de qualquer vontade, destituído de tudo e na mais completa pobreza “cai no mais baixo do baixo” , onde se realiza a theosis, a reciprocidade total entre o homem perfeito e Deus.

Na realidade, por parte do servo, essa “descida” é uma ascensão. Nós a nomeamos “descida” apenas porque ele busca através dessa ascensão descer no Real ... Mas na realidade da realidade, através Dele descemos até Ele e através de nós Ele desce até nós. 
Seja isso uma estação intermediária mútua ou uma completa descida onde Ele é o que fala e o que ouve, Ele sabe o que diz ...

Podemos ver que, assim como Marguerite Porete usa a imagem do abismo como lugar ao mesmo tempo o mais profundo e o mais elevado, pois a descida da alma e sua elevação a Deus são consideradas uma única e mesma coisa, e a união da alma com Deus é descrita como o abismo da alma no abismo de Deus ou vice-versa.  


Ibn’Arabī também utiliza a idéia teológica de que o mais baixo é o mais elevado.
A teologia mística negativa em Marguerite Porete e Ibn’Arabī

Marguerite Porete também nos diz que de Deus não se pode falar
Para ela, Deus é completamente estranho à linguagem. Nenhum conceito humano ou forma material podem descrevê-lo, que é mais que dizer, é portanto mais como mentir do que como falar a verdade.”

Para Marguerite, a única forma de se aproximar de Deus é negar tudo que é exterior a ele, é se tornar ela própria negação para poder se unir a ele. Essa condição é descrita como a aniquilação: a alma que nada deseja fazer, aprender, querer, perder, ganhar ou saber. Porém essa alma, que nada pode dizer sobre si ou sobre Deus, não cessa de falar, encarnando o paradoxo da linguagem.

Numa verdadeira apófase do desejo, essa alma se esvazia de toda vontade e termina por cair do amor no nada.
É nessa queda profunda que ela se torna “nada” no abismo onde encontra o “nada” divino, e volta a “ser o que era” antes de sua criação.
Agora, somente a vontade divina age nela através da união realizada por obra do Amor.  
A alma é agora menos que nada e nada pode fazer senão a vontade de Deus e assim ela é nada e tudo.
... essa Alma possui tudo e não possui nada, sabe tudo e não sabe nada, deseja tudo e não deseja nada. ... Não deseja nem despreza pobreza nem martírio nem atribulações, nem missas ou sermões, jejuns ou preces e dá à Natureza tudo que ela lhe pede sem remorso de consciência.
Como podemos ver, a apófase do desejo realizada por Marguerite Porete inclui a recomendação de dar à natureza tudo que ela deseja, mas isso se aplica à alma aniquilada na qual a natureza, a vontade e o espírito morreram e que se encontra numa união tão total com Deus que não pode desejar nada que contrarie a vontade divina.

Porete faz uma inversão da linguagem cristã sobre a queda, juntando os opostos ao afirmar que uma “descida” no pecado é necessária para a “ascensão” até a união.  
Reconhecendo sua total pecaminosidade, num abismo de humildade, “essa alma tornou-se nada e menos do que nada em todos os aspectos” e sua miséria total lhe garante a total bondade divina.

A alma aniquilada já não possui um nome, exceto o daquele com o qual se fundiu.
Porete utiliza a imagem do rio que flui para o mar e perde seu nome – essa alma foi conduzida para o Pai, a origem sem origem da Trindade, onde recebe sua existência virtual, perdendo “seu nome”, que denota um ser distinto.
Porete utiliza também a metáfora do ferro no fogo – o ferro que se torna ele próprio fogo em virtude da força do fogo. Esse fogo, sinal da presença de Deus, consome na alma tudo que não se origina dele, promovendo uma transmutação divina e permitindo que a alma se torne um espelho teofânico. 
Tanto nessa metáfora quanto na imagem do rio que perde seu nome está implicada a idéia de que há algo incognoscível sobre o eu e que espelha a incognoscibilidade divina na teologia apofática.  
Em seu lugar mais profundo o fundamento da alma é idêntico ao fundamento de Deus. 
Portanto, a alma vem do mar com um nome e retorna ao mar, perdendo seu nome como rio ou, em outras palavras, como algo criado, ganhando o nome daquele no qual se transformou, ou seja, mar ou Deus, do qual não mais se distingue.

Essa concepção é complementada pela idéia da preexistência eterna da alma na Deidade, que antecede a criação.

Na verdade, perder Deus e o caminho para Deus é ser conduzida ao nada-em-Deus.

Porete mostra que a expansão da compreensão da alma começa quando ela verdadeiramente compreende que nada sabe sobre si mesma ou sobre Deus, e que o que ela entende de si é o que ela entende sobre Deus.

O termo “nada” é utilizado para mostrar o estado da alma no estágio da queda, do aprofundamento no abismo, onde permanece na mais extrema humildade sem qualquer desejo próprio, quando só Deus deseja nela.  
Esse “nada” está relacionado ao “nada” a partir do qual Deus criou tudo, à sua existência virtual em Deus antes que ela fosse criada.
Ao ser criada, a alma que não era nada passa a ser algo, pois passa a desejar independentemente de Deus, tornando-se outra coisa.
O “nada” também se refere à natureza divina, que é tudo e nada. 
Contudo, Porete também utiliza o termo “nada” no sentido de algo que é menos que Deus. Comparada com a natureza divina, a natureza criada da alma é “nada”.

Essa é a dialética de nada e tudo esboçada por Marguerite Porete. Nesse vazio ontológico, a alma caiu na certeza de “nada saber” e “nada querer”, de “viver sem um porquê”, pois aniquilou a vontade e também o amor.  
É nesse abismo de humildade que ela perde seu nome.  
A alma nobre e livre e Deus são agora espelhos um do outro graças à “clarificação” da alma propiciada pela graça divina.

Já vimos que para Ibn'Arabī, o cosmos é um espelho não-polido. Para que o espelho brilhe e para que os nomes divinos adquiram realidade, é necessário o homem completo ou perfeito, que em sua aniquilação (fanā’) do eu é capaz de refletir todos os atributos divinos. 
Há um hadith da tradição livre, no qual quem fala é Allah, que é paradigmático para a compreensão sufi da união mística como aniquilação. Nele, Deus diz que quando ama seu servo torna-se seu ouvido, sua visão, suas mãos, seus pés e sua fala. 
Entende-se que quando o eu é aniquilado na experiência mística da fanā’, o divino vê, ouve, caminha, toca e fala por meio das faculdades humanas.

Essa é a experiência de amor apaixonado que Ibn’Arabī chama de hawā e define como a “total aniquilação da vontade no Amado”. Esse amor implica na renúncia da vontade, na pobreza radical e na theomorfosis mencionada no hadith, ou seja, na identificação com o Amado a ponto de assumir seus atributos.

Os que retornam a Deus estão “destituídos “ de qualquer outra coisa senão Deus. 
Um homem rico que vê o Real em toda forma não alcança o nível daquele que O vê em coisa alguma (lā shay’), pois este último O vê livre de todo relacionamento, não-delimitado, e sem qualquer delimitação.
Quando o discípulo inicia o caminho (sulūk), ele se considera autônomo, não escapa da ilusão voluntarista
Ele não sabe que é murīd (desejante) porque na verdade é desejado (murād) por Deus, que ele espera alcançar por seus próprios poderes.
Poucos eleitos são capazes de atingir a mais alta estação que resulta na mais completa pobreza, a estação de nenhuma estação, onde estão aniquilados, despojados de si e mesmo de Deus, tendo abandonado mesmo qualquer idéia de possuí-lo.

Em seu distanciamento, eles voltam ao estado em que eram sem saber que eram, ao nada do estado de preexistência quando se encontravam envoltos no “tesouro oculto”.

O conhecedor perfeito reconhece Deus em todas as formas enquanto os outros homens o reconhecem apenas na imagem mental que fazem dele, mas é no vazio criatural que Ibn’Arabī explicita o paradoxo da visão de Deus, dizendo que “é o olhar de Deus que alcança Deus e O vê, não o seu” ou “Ele é o único que vê, que é visto e Aquilo através do qual é visto”.  
Apenas aquele que perdeu tudo, cuja contemplação está livre de todas as formas, alcança o absoluto.

O povo da perfeição realizou todas as estações e estados e foi além deles para a estação acima da majestade e da beleza, de tal forma que eles não possuem nenhum atributo e nenhuma descrição. 
Foi dito a Abū Yazīd. “Como estás esta manhã?” Ele respondeu, “Não tenho nem manhã nem noite; manhã e noite pertencem aos que se tornam delimitados por atributos, mas eu já não tenho nenhum atributo.”
A raiz desse conhecimento de Allah é a derradeira estação alcançada pelo gnóstico, isso é, “nenhuma estação”, à qual Deus alude no verso “Ó povo de Yathrib, não tens nenhuma estação” .
A concepção comum de que a união mística apofática é uma união “com Deus” ... Não há união com Deus; ao contrário, a união ocorre dentro e além da Deidade. 
Eckhart escreve sobre a Deidade que tem de desistir de suas “propriedades” para nascer na alma na união mística.

Ainda que Ibn’Arabī não utilize a linguagem da “Deidade para além do ser”, que caracteriza a corrente mística cristã influenciada pelo neoplatonismo, ele concebe um primeiro grau da de existência (Dhāt ou Dhāt Allah), a Essência absoluta ou o mistério absoluto (ghayb mutlaq) ou o mistério do mistério (ghayb al-ghayb), que transcende toda relação, toda manifestação e toda determinação e que permanece inacessível, incognoscível e indizível. Só se pode falar dela em termos negativos.

Somente num outro grau de existência é que a Essência é vislumbrada como o princípio da primeira teofania essencial, a Unicidade ou Unidade plural, que é o princípio de toda multiplicidade e a origem do desdobramento das possibilidades contidas no interior do “tesouro” oculto no Uno. 
É essa Unicidade plural que comporta uma infinidade de propriedades e de realidades que o amor, em sua força de expansão, vai desdobrar e propagar na existência universal, na manifestação que constitui o “Suspiro do Omnicompassivo”.
Portanto, na concepção de Ibn Arabi, Dhāt parece corresponder ao Uno plotiniano e à Deidade em Eckhart, no sentido de estar além de todo dualismo, todo nome e toda qüididade, ainda que, como os outros sufis, ele não se refira à Deidade como nada, o que contrariaria o adab. 
Porete, por sua vez, não faz uma distinção clara, mas dá indicações do Uno que antecede a Trindade.

A maneira como Deus, o ser que não exclui nada, origina os seres de tal forma que eles não são sem ser e ainda assim são totalmente distintos dele em si, forma a dialética na qual é dito que Deus flui para todas as criaturas, mas permanece intocado por elas e que tudo flui de Deus, mas ainda assim permanece dentro dele.

A unidade absoluta da Deidade, para eles, não é Deus, não é nada que possa ser nomeado
Como tão bem formula Ibn’Arabī, chamar Deus de “criador” é marcá-lo em termos das criaturas; chamá-lo causa é defini-lo fora dos efeitos e assim por diante. 
Cada um desses atributos “absolutos” é relativo a outra coisa na cadeia discursiva.  
Como ser que inclui todos os nomes dentro de si de forma indistinta, Deus não tem nenhum nome.  
Portanto Ele é igual a nada, e Nele não há imagem ou forma.
Deus é nada no sentido em que é um “não sei o quê”, para além de todo “algo” que pode ser concebido
É a negação da negação, que ao mesmo tempo é pura afirmação, plenitude e superabundância.

Esse nada é oposto ao nada das criaturas, caracterizado pela condição de seu ser como limitado pelo não-ser ou pela não-existência fora da existência em si. 
Já o ser divino é nada porque não é “isso” ou “aquilo”. É coisa alguma, sem predicados e totalmente obscuro à compreensão.
Para conceber apropriadamente esse Deus despido de atributos, a alma deve se tornar o nada que é em seu fundamento, entrando na escuridão em que nada é visível.
É dentro desse nada que Deus nasce.
É aí que se dá o encontro e é aí onde Deus é verdadeiramente Deus, quando as criaturas terminam.

Marguerite Porete e Ibn’Arabī sabem que a resposta mais apropriada à verdade divina, que corresponde genuinamente à natureza de Deus e à unidade da alma com Deus, é o silêncio.

É dentro dessa tradição negativa que Eckhart vai orar a Deus para que o livre de Deus
Essa é uma oração que deve ser permanente para que não fiquemos atados às imagens fixas, mesmo à imagem de estarmos além das imagens.

Quando Ibn’Arabī insiste no “desatamento dos nós no coração”, no abandono de toda imagem do eu e da Deidade, está falando na manutenção do eterno fluxo de imagens e, como na oração de Eckhart, insistindo para não nos ligarmos a nenhuma criatura, ainda que seja a Deidade mística, para mantermos o discurso aberto, sem os fechamentos que transformam em ídolos as suas melhores criações.

Eu oro a Deus –– para me livrar de “Deus”, quer dizer, de todos esses efeitos nominais que tentam nos manter em submissão, todos esses efeitos lingüísticos-culturais históricos que estão reunidos sob a palavra Deus.

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