A Imagem de Deus
Marguerite Porete e Ibn’Arabī
falam das imagens de Deus formuladas em suas respectivas tradições religiosas.
Na jornada mística por eles
descrita, a alma progride mais profundamente para dentro da escuridão divina.
Por meio da linguagem de perplexidade, do
paradoxo e da ambigüidade, eles expõem a consciência da aniquilação ontológica
na qual as fronteiras entre o eu e Deus se dissolvem.
Na “morte” que ocorre, a alma se livra das
construções teológicas e da opressão espiritual, descobrindo uma verdade que
desafia a verbalização.
Aqui ela encontra a Deidade que se descarta de
propriedades e nomes, partilhando a mesma nudez.
A teologia trinitária em Marguerite Porete
A teologia trinitária em Marguerite Porete
As almas humanas têm uma marca própria que
as diferencia de todas as outras criaturas, a marca da Trindade que habita
dentro delas.
Por meio dessa imagem, certas almas
nobres podem, durante a vida terrena, atingir o paradoxal estado de “nada”, a aniquilação.
A natureza trinitária desse Deus
ao mesmo tempo imanente e transcendente é central na doutrina de aniquilação de
Marguerite Porete.
Marguerite Porete não enfatiza o papel da segunda pessoa da Trindade como mediadora da criação. Cada pessoa da Trindade é igual e indispensável ao ato da criação.
Marguerite Porete não enfatiza o papel da segunda pessoa da Trindade como mediadora da criação. Cada pessoa da Trindade é igual e indispensável ao ato da criação.
Contudo, há no texto de Marguerite Porete pistas que sugerem ser o Espírito
Santo, como a bondade, a vontade e o amor de Deus, ao menos tão
importante quanto o Filho na criação e no destino da alma humana e do mundo.
Para Marguerite Porete, Deus o Pai possui o poder que é somente seu e que só de maneira derivada o Filho e o Espírito Santo recebem, ainda que sejam iguais a Deus.
Para Marguerite Porete, Deus o Pai possui o poder que é somente seu e que só de maneira derivada o Filho e o Espírito Santo recebem, ainda que sejam iguais a Deus.
Tal concepção fica mais clara no caso do Filho,
que Porete descreve como concebido pelo Pai, “herdando” Dele sua natureza
divina.
Contudo, o Espírito Santo é explicitamente “não
nascido”, procede misteriosamente tanto do Pai quanto do Filho, o
que entretanto não diminui o seu status na Trindade e sua centralidade no
Miroir.
O Pai é a “substância eterna”, origem de tudo.
Essa substância encontra sua “fruição” na
pessoa do Filho.
O Espírito Santo é a união da substância eterna
e da fruição – o encontro do Pai e do Filho no Amor.
Porete utiliza ora a designação
tradicional do Pai
como poder, do Filho como Sabedoria e do Espírito Santo como bondade,
ora a tríade de substância, fruição e conjunção.
Porete exalta a filiação divina. A pessoa do Filho, além da natureza divina, possui também a natureza humana, composta de corpo e alma.
Porete exalta a filiação divina. A pessoa do Filho, além da natureza divina, possui também a natureza humana, composta de corpo e alma.
Contudo, ela frisa
que a filiação
“adotiva” das almas aniquiladas, efetuada pela graça e aliada ao abandono da
vontade, se iguala a ser “concebido” pelo Pai e permite que as mesmas ascendam
aos céus.
A Verdade me disse que ninguém ascenderá exceto aquele que de lá desceu, isto é, o próprio Filho de Deus.
A Verdade me disse que ninguém ascenderá exceto aquele que de lá desceu, isto é, o próprio Filho de Deus.
Isso quer dizer que ninguém ascenderá até lá,
exceto aqueles que são Filhos de Deus pela graça divina.
Para Porete, a graça é explicitamente trinitária.
Para Porete, a graça é explicitamente trinitária.
A alma, criada pela Trindade
por meio da efusão do amor divino, é por Ela eternamente amada.
Ao ser criada, a
alma recebe um imprint da imagem da Trindade, mas a doutrina de
Porete é uma doutrina de imagem recíproca – a alma também está gravada e mantida em
Deus por obra do Amor, que é o Espírito Santo, e
mantém uma imagem da Trindade dentro de si.
A maior
parte da alma existe sempre em Deus.
É importante frisar que, para
Porete, é o Amor
– o Espírito Santo e não a Sabedoria
–, o Filho, que
mantém a imagem da alma dentro de Deus. A alma está na Trindade, e a Trindade está
dentro da alma, eternamente, por obra do Espírito Santo.
Para Marguerite, o mais alto ponto de perfeição espiritual é alcançado apenas pelo poder do Espírito Santo, a quem cabe o papel principal na dinâmica de crescimento espiritual.
Para Marguerite, o mais alto ponto de perfeição espiritual é alcançado apenas pelo poder do Espírito Santo, a quem cabe o papel principal na dinâmica de crescimento espiritual.
No vazio que se segue a aniquilação da vontade
há o preenchimento divino pelo Espírito Santo, cujo trabalho permite
que alma seja transformada de maneira radical.
É nesse momento que, de acordo com a teologia de Marguerite de processão
das Pessoas dentro da Trindade, a alma recebe toda a Trindade, pois o Espírito Santo possui
completamente o que as outras duas Pessoas possuem.
É nesse momento que a imagem da Trindade impressa na alma
torna-se propriamente o “tesouro” da Trindade, tornando essa alma idêntica à
Deidade.
A dimensão cristológica e a
salvação
Porete não parece estar
particularmente interessada no destino da massa da humanidade e sim no destino
de certas almas individuais eleitas.
Porete afirma que as tristes almas presas alcançam a salvação pela graça de Cristo, mas permanecem escravas das virtudes e do exemplo de Cristo em seus sofrimentos corporais.
Porete afirma que as tristes almas presas alcançam a salvação pela graça de Cristo, mas permanecem escravas das virtudes e do exemplo de Cristo em seus sofrimentos corporais.
Essas almas, que não seguem as mensagens do Amor e
escolhem a salvação por meio das obras, podem ser salvas pela obra redentora de
Cristo, porém nunca alcançarão o status espiritual mais elevado, reservado àquelas que
abandonam a vontade e atingem a aniquilação.
Porete acha que o sacrifício de Cristo, como pagamento do débito da humanidade para com Deus, redime o pecado original e atenua a profunda alienação humana, mas não é suficiente para certas almas que buscam a aniquilação e que devem ser responsáveis por seu próprio caminho de salvação.
Porete vê a queda na obstinação no uso da vontade e na ignorância.
Porete acha que o sacrifício de Cristo, como pagamento do débito da humanidade para com Deus, redime o pecado original e atenua a profunda alienação humana, mas não é suficiente para certas almas que buscam a aniquilação e que devem ser responsáveis por seu próprio caminho de salvação.
Porete vê a queda na obstinação no uso da vontade e na ignorância.
Em última análise, não
importa se a serpente ou a mulher ou as tentações do corpo causaram a queda de
Adão e ele nem
mesmo precisaria ser tentado a partir de uma situação externa, pois sua queda foi causada
pelo exercício de sua vontade, que o compelia internamente e o afastou de Deus.
Embora o Paraíso seja o lugar onde as almas tristes e presas alcançam a mais alta visão de Deus, não é a destinação das almas aniquiladas, pois ainda é um lugar que se deseja alcançar.
A destinação última das almas nobres é coisa alguma, nada.
Na visão de Porete, a verdadeira imitatio Christi é o ato de abandonar a vontade humana à vontade de Deus.
Na visão de Porete, a verdadeira imitatio Christi é o ato de abandonar a vontade humana à vontade de Deus.
Ela dispensa as imitações
corporais de Cristo como caminho para a união com Deus, pois a alma somente
alcança a paz através do repouso na Trindade, sendo para isso necessária a
aniquilação da vontade.
Para Porete, a vontade humana é livre para escolher entre o bem e o mal em sua vida terrena.
Para Porete, a vontade humana é livre para escolher entre o bem e o mal em sua vida terrena.
Porete
afirma que as almas aniquiladas, que reconheceram sua pecaminosidade e se esvaziaram
totalmente, de tal forma que a bondade divina pudesse nelas habitar,
tornam-se também
salvadoras.
Elas foram “plantadas pelo Pai” e vieram ao
mundo, descendo da perfeição para a imperfeição, a fim de obter maior perfeição,
essas almas totalmente humildes tornam-se co-redentoras com Cristo.
Mais uma vez o foco principal de
Marguerite Porete é a liberdade que certas almas têm frente a Deus,
baseada na existência virtual da alma na Trindade.
Sintetizando, fica claro que Porete acreditava em dois tipos de salvação: a salvação de modo “não-cortês” (mal courtoisement) das almas mercadoras, que apenas cumprem os mandamentos e as doutrinas da santa Igreja, a pequena, e das almas tristes, que mesmo em estágios mais elevados do amor não atingem a liberdade; e a verdadeira salvação, alcançada pelas almas nobres e aniquiladas que, abandonando qualquer vontade, atualizam o tesouro de suas verdadeiras naturezas.
Sintetizando, fica claro que Porete acreditava em dois tipos de salvação: a salvação de modo “não-cortês” (mal courtoisement) das almas mercadoras, que apenas cumprem os mandamentos e as doutrinas da santa Igreja, a pequena, e das almas tristes, que mesmo em estágios mais elevados do amor não atingem a liberdade; e a verdadeira salvação, alcançada pelas almas nobres e aniquiladas que, abandonando qualquer vontade, atualizam o tesouro de suas verdadeiras naturezas.
A doutrina da unidade do Ser em Ibn’Arabī
O princípio da unidade (al-tawh(īd) é o cerne da mensagem islâmica e determina sua espiritualidade em todas as suas múltiplas dimensões e formas. O objetivo último do Islã é revelar a unidade do princípio divino e integrar o mundo da multiplicidade à luz dessa unidade.
Os planos do ser se iniciam no Ser Absoluto e transcendente, imerso em sua natureza abissal e em seu silêncio, que constitui um mistério insolúvel para a mente do homem comum.
Nesse plano mais elevado do ser, não há
manifestação. A tajallī do Absoluto começa apenas no estágio
seguinte, o da unidade, que significa já a unidade dos muitos.
A palavra Allah ou Deus não designa o
Absoluto nesse estado abissal, pois já indica um estado de determinação.
O verdadeiro Absoluto (Haqq) é algo que nem
mesmo pode ser chamado Deus.
Quando nos referimos a Allah ou Deus, já estamos falando
da teofania do Mistério, embora em sua forma mais perfeita.
Todos as qualidades
atribuídas a Deus não se aplicam à Essência, que é sem atributos.
A única maneira
de se ver o Absoluto é por intermédio de seus aspectos de automanifestação.
Ao estágio de Unidade absolutamente indiferenciada se sucede o estágio de Unidade que se diferencia interiormente, no nível dos nomes divinos, e, no estágio seguinte, se dá a criação.
Ao estágio de Unidade absolutamente indiferenciada se sucede o estágio de Unidade que se diferencia interiormente, no nível dos nomes divinos, e, no estágio seguinte, se dá a criação.
Deus em si mesmo é incognoscível, embora possa
ser conhecido quando se manifesta.
Contudo, essas auto manifestações
partilham da
incognoscibilidade divina à
medida que nunca se repetem.
Ibn'Arabī estabelece um eterno paradoxo: tanto as coisas do mundo material como do mundo imaginal são, por um lado, as muitas formas de teofania divina, mas, por outro, agem exatamente como véus que ocultam uma completa automanifestação de Deus.
Ibn'Arabī estabelece um eterno paradoxo: tanto as coisas do mundo material como do mundo imaginal são, por um lado, as muitas formas de teofania divina, mas, por outro, agem exatamente como véus que ocultam uma completa automanifestação de Deus.
O mundo todo
é um véu que oculta o Absoluto.
Não podemos conhecer Deus em si mesmo, apenas Deus como se manifesta através do cosmos.
Não podemos conhecer Deus em si mesmo, apenas Deus como se manifesta através do cosmos.
Essa segunda perspectiva
significa que Deus, enquanto possuidor de nomes, estabelece um relacionamento
com o cosmos.
O Corão repetidamente afirma que todas as coisas são sinais (āyāt) de Deus, ou seja, tudo fornece informações sobre a natureza e a realidade divinas.
O Corão repetidamente afirma que todas as coisas são sinais (āyāt) de Deus, ou seja, tudo fornece informações sobre a natureza e a realidade divinas.
Ibn’Arabī vê tudo no universo como um reflexo dos nomes e atributos divinos.
Um conhecido hadith atribuído ao
Profeta explica por
que Deus criou o cosmos: “Eu era um tesouro oculto e desejava ser
conhecido.”
Conseqüentemente, para Ibn Arabi, o mundo é o locus onde o Tesouro oculto é
conhecido pelas criaturas.
Através do cosmos, Deus se revela às suas criaturas e as
próprias criaturas são manifestações dos nomes e atributos divinos.
Suas qualidades, em última análise, são as qualidades de Deus.
Nada permanece constante na criação por dois momentos sucessivos.
Nada permanece constante na criação por dois momentos sucessivos.
A todo momento Deus
recria o cosmos.
A cada novo momento,
também, a severidade divina destrói o cosmos.
Cada momento sucessivo representa
um novo universo, semelhante ao precedente, mas também diferente. Cada novo
universo representa uma nova teofania, tal como expresso no axioma teológico
“As teofanias de Deus nunca se repetem”, já que Deus é infinito.
O Deus das teofanias: os nomes divinos
Tudo o que podemos saber sobre Ele está pré- figurado em seus nomes.
Num determinado sentido, cada nome é igual à Essência, cada um deles é uma barzakh ou ponte entre a Essência e o cosmos, mas à medida que a Essência é incomparável, sem atributos e está além de todos os relacionamentos, os nomes divinos mostram as relações que a Essência mantém com o mundo.
O Deus das teofanias: os nomes divinos
Tudo o que podemos saber sobre Ele está pré- figurado em seus nomes.
Num determinado sentido, cada nome é igual à Essência, cada um deles é uma barzakh ou ponte entre a Essência e o cosmos, mas à medida que a Essência é incomparável, sem atributos e está além de todos os relacionamentos, os nomes divinos mostram as relações que a Essência mantém com o mundo.
Eles
representam a Essência a partir do ponto de vista das várias relações especiais
causadas pelo fenômeno da automanifestação.
Deus conhece os nomes, pois Ele conhece todo o objeto de conhecimento, enquanto nós conhecemos os nomes por meio da diversidade de seus efeitos dentro de nós.
Deus conhece os nomes, pois Ele conhece todo o objeto de conhecimento, enquanto nós conhecemos os nomes por meio da diversidade de seus efeitos dentro de nós.
Nós
o nomeamos tal e tal a partir do efeito daquilo que encontramos em nós mesmos.
Assim, os efeitos são múltiplos dentro de nós, enquanto Deus é nomeado por
eles.
Por conseguinte eles são atribuídos a Ele, mas Ele não se torna múltiplo em Si-Mesmo por meio deles.
Na verdade, é o mundo criado que necessita dos nomes, e não o Absoluto.
O que define cada coisa particular no cosmos é a “privação do ser” que lhe é própria e em razão da qual ela é uma coisa delimitada (um cavalo, ou uma flor ou um homem) e não o Ser puro.
Na verdade, é o mundo criado que necessita dos nomes, e não o Absoluto.
O que define cada coisa particular no cosmos é a “privação do ser” que lhe é própria e em razão da qual ela é uma coisa delimitada (um cavalo, ou uma flor ou um homem) e não o Ser puro.
Dessa
forma, visto como uma entidade autônoma distinta do Ser Absoluto, o universo é uma quimera, pois não possui ser próprio.
É nesse sentido que Ibn’Arabī diz que o universo é uma ilusão, não possui existência real, o que é característico da imaginação.
É nesse sentido que Ibn’Arabī diz que o universo é uma ilusão, não possui existência real, o que é característico da imaginação.
Longe Perto e a dinâmica de gênero na Deidade
... Mas não me perguntem quem é esse Longe Perto, e quais são as obras que Ele realiza e suas operações quando ele mostra a glória à Alma, pois não se pode dizer nada exceto que o Longe Perto é a própria Trindade, e essa manifestação que ela opera para a alma, nós a chamamos “movimento”, não porque a Alma ou a Trindade se movam, mas porque a Trindade opera para essa alma a manifestação de sua glória.
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