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quinta-feira, 3 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 5



  

A Imagem de Deus

Marguerite Porete e Ibn’Arabī falam das imagens de Deus formuladas em suas respectivas tradições religiosas.
Na jornada mística por eles descrita, a alma progride mais profundamente para dentro da escuridão divina.   
Por meio da linguagem de perplexidade, do paradoxo e da ambigüidade, eles expõem a consciência da aniquilação ontológica na qual as fronteiras entre o eu e Deus se dissolvem. 

Na “morte” que ocorre, a alma se livra das construções teológicas e da opressão espiritual, descobrindo uma verdade que desafia a verbalização. 

Aqui ela encontra a Deidade que se descarta de propriedades e nomes, partilhando a mesma nudez.

A teologia trinitária em Marguerite Porete

As almas humanas têm uma marca própria que as diferencia de todas as outras criaturas, a marca da Trindade que habita dentro delas. 

Por meio dessa imagem, certas almas nobres podem, durante a vida terrena, atingir o paradoxal estado de “nada”, a aniquilação. 

A natureza trinitária desse Deus ao mesmo tempo imanente e transcendente é central na doutrina de aniquilação de Marguerite Porete.

Marguerite Porete não enfatiza o papel da segunda pessoa da Trindade como mediadora da criação. Cada pessoa da Trindade é igual e indispensável ao ato da criação. 
Contudo, há no texto de Marguerite Porete pistas que sugerem ser o Espírito Santo, como a bondade, a vontade e o amor de Deus, ao menos tão importante quanto o Filho na criação e no destino da alma humana e do mundo.

Para Marguerite Porete, Deus o Pai possui o poder que é somente seu e que só de maneira derivada o Filho e o Espírito Santo recebem, ainda que sejam iguais a Deus. 
Tal concepção fica mais clara no caso do Filho, que Porete descreve como concebido pelo Pai, “herdando” Dele sua natureza divina. 

Contudo, o Espírito Santo é explicitamente “não nascido”, procede misteriosamente tanto do Pai quanto do Filho, o que entretanto não diminui o seu status na Trindade e sua centralidade no Miroir. 

O Pai é a “substância eterna”, origem de tudo.
Essa substância encontra sua “fruição” na pessoa do Filho.
O Espírito Santo é a união da substância eterna e da fruição – o encontro do Pai e do Filho no Amor. 

Porete utiliza ora a designação tradicional do Pai como poder, do Filho como Sabedoria e do Espírito Santo como bondade, ora a tríade de substância, fruição e conjunção.

Porete exalta a filiação divina. A pessoa do Filho, além da natureza divina, possui também a natureza humana, composta de corpo e alma. 
Contudo, ela frisa que a filiação “adotiva” das almas aniquiladas, efetuada pela graça e aliada ao abandono da vontade, se iguala a ser “concebido” pelo Pai e permite que as mesmas ascendam aos céus.

A Verdade me disse que ninguém ascenderá exceto aquele que de lá desceu, isto é, o próprio Filho de Deus.    
Isso quer dizer que ninguém ascenderá até lá, exceto aqueles que são Filhos de Deus pela graça divina.

Para Porete, a graça é explicitamente trinitária. 
A alma, criada pela Trindade por meio da efusão do amor divino, é por Ela eternamente amada.  
Ao ser criada, a alma recebe um imprint da imagem da Trindade, mas a doutrina de Porete é uma doutrina de imagem recíproca – a alma também está gravada e mantida em Deus por obra do Amor, que é o Espírito Santo, e mantém uma imagem da Trindade dentro de si.

A maior parte da alma existe sempre em Deus.
 
É importante frisar que, para Porete, é o Amor – o Espírito Santo e não a Sabedoria –, o Filho, que mantém a imagem da alma dentro de Deus. A alma está na Trindade, e a Trindade está dentro da alma, eternamente, por obra do Espírito Santo.

Para Marguerite, o mais alto ponto de perfeição espiritual é alcançado apenas pelo poder do Espírito Santo, a quem cabe o papel principal na dinâmica de crescimento espiritual. 

No vazio que se segue a aniquilação da vontade há o preenchimento divino pelo Espírito Santo, cujo trabalho permite que alma seja transformada de maneira radical.  

É nesse momento que, de acordo com a teologia de Marguerite de processão das Pessoas dentro da Trindade, a alma recebe toda a Trindade, pois o Espírito Santo possui completamente o que as outras duas Pessoas possuem

É nesse momento que a imagem da Trindade impressa na alma torna-se propriamente o “tesouro” da Trindade, tornando essa alma idêntica à Deidade.


 A dimensão cristológica e a salvação

Porete não parece estar particularmente interessada no destino da massa da humanidade e sim no destino de certas almas individuais eleitas.

Porete afirma que as tristes almas presas alcançam a salvação pela graça de Cristo, mas permanecem escravas das virtudes e do exemplo de Cristo em seus sofrimentos corporais. 
Essas almas, que não seguem as mensagens do Amor e escolhem a salvação por meio das obras, podem ser salvas pela obra redentora de Cristo, porém nunca alcançarão o status espiritual mais elevado, reservado àquelas que abandonam a vontade e atingem a aniquilação.

Porete acha que o sacrifício de Cristo, como pagamento do débito da humanidade para com Deus, redime o pecado original e atenua a profunda alienação humana, mas não é suficiente para certas almas que buscam a aniquilação e que devem ser responsáveis por seu próprio caminho de salvação.

Porete vê a queda na obstinação no uso da vontade e na ignorância

 Em última análise, não importa se a serpente ou a mulher ou as tentações do corpo causaram a queda de Adão e ele nem mesmo precisaria ser tentado a partir de uma situação externa, pois sua queda foi causada pelo exercício de sua vontade, que o compelia internamente e o afastou de Deus. 

Embora o Paraíso seja o lugar onde as almas tristes e presas alcançam a mais alta visão de Deus, não é a destinação das almas aniquiladas, pois ainda é um lugar que se deseja alcançar

A destinação última das almas nobres é coisa alguma, nada.

Na visão de Porete, a verdadeira imitatio Christi é o ato de abandonar a vontade humana à vontade de Deus
Ela dispensa as imitações corporais de Cristo como caminho para a união com Deus, pois a alma somente alcança a paz através do repouso na Trindade, sendo para isso necessária a aniquilação da vontade.

Para Porete, a vontade humana é livre para escolher entre o bem e o mal em sua vida terrena.  

Porete afirma que as almas aniquiladas, que reconheceram sua pecaminosidade e se esvaziaram totalmente, de tal forma que a bondade divina pudesse nelas habitar, tornam-se também salvadoras.           

Elas foram “plantadas pelo Pai” e vieram ao mundo, descendo da perfeição para a imperfeição, a fim de obter maior perfeição, essas almas totalmente humildes tornam-se co-redentoras com Cristo.
Mais uma vez o foco principal de Marguerite Porete é a liberdade que certas almas têm frente a Deus, baseada na existência virtual da alma na Trindade.

Sintetizando, fica claro que Porete acreditava em dois tipos de salvação: a salvação de modo “não-cortês” (mal courtoisement) das almas mercadoras, que apenas cumprem os mandamentos e as doutrinas da santa Igreja, a pequena, e das almas tristes, que mesmo em estágios mais elevados do amor não atingem a liberdade; e a verdadeira salvação, alcançada pelas almas nobres e aniquiladas que, abandonando qualquer vontade, atualizam o tesouro de suas verdadeiras naturezas. 


A doutrina da unidade do Ser em Ibn’Arabī

O princípio da unidade (al-tawh(īd) é o cerne da mensagem islâmica e determina sua espiritualidade em todas as suas múltiplas dimensões e formas. O objetivo último do Islã é revelar a unidade do princípio divino e integrar o mundo da multiplicidade à luz dessa unidade.

Os planos do ser se iniciam no Ser Absoluto e transcendente, imerso em sua natureza abissal e em seu silêncio, que constitui um mistério insolúvel para a mente do homem comum

Nesse plano mais elevado do ser, não há manifestação. A tajallī do Absoluto começa apenas no estágio seguinte, o da unidade, que significa já a unidade dos muitos. 

A palavra Allah ou Deus não designa o Absoluto nesse estado abissal, pois já indica um estado de determinação.
 
O verdadeiro Absoluto (Haqq) é algo que nem mesmo pode ser chamado Deus.  

Quando nos referimos a Allah ou Deus, já estamos falando da teofania do Mistério, embora em sua forma mais perfeita.  
Todos as qualidades atribuídas a Deus não se aplicam à Essência, que é sem atributos.  
A única maneira de se ver o Absoluto é por intermédio de seus aspectos de automanifestação.

Ao estágio de Unidade absolutamente indiferenciada se sucede o estágio de Unidade que se diferencia interiormente, no nível dos nomes divinos, e, no estágio seguinte, se dá a criação. 

Deus em si mesmo é incognoscível, embora possa ser conhecido quando se manifesta
Contudo, essas auto manifestações partilham da incognoscibilidade divina à medida que nunca se repetem.

Ibn'Arabī estabelece um eterno paradoxo: tanto as coisas do mundo material como do mundo imaginal são, por um lado, as muitas formas de teofania divina, mas, por outro, agem exatamente como véus que ocultam uma completa automanifestação de Deus.  

O mundo todo é um véu que oculta o Absoluto.

Não podemos conhecer Deus em si mesmo, apenas Deus como se manifesta através do cosmos

Essa segunda perspectiva significa que Deus, enquanto possuidor de nomes, estabelece um relacionamento com o cosmos.

O Corão repetidamente afirma que todas as coisas são sinais (āyāt) de Deus, ou seja, tudo fornece informações sobre a natureza e a realidade divinas. 
Ibn’Arabī vê tudo no universo como um reflexo dos nomes e atributos divinos. 

Um conhecido hadith atribuído ao Profeta explica por que Deus criou o cosmos: “Eu era um tesouro oculto e desejava ser conhecido.” 

Conseqüentemente, para Ibn Arabi, o mundo é o locus onde o Tesouro oculto é conhecido pelas criaturas.  
Através do cosmos, Deus se revela às suas criaturas e as próprias criaturas são manifestações dos nomes e atributos divinos. Suas qualidades, em última análise, são as qualidades de Deus.

Nada permanece constante na criação por dois momentos sucessivos.  

A todo momento Deus recria o cosmos.  

A cada novo momento, também, a severidade divina destrói o cosmos. 


Cada momento sucessivo representa um novo universo, semelhante ao precedente, mas também diferente. Cada novo universo representa uma nova teofania, tal como expresso no axioma teológico “As teofanias de Deus nunca se repetem”, já que Deus é infinito.

O Deus das teofanias: os nomes divinos

Tudo o que podemos saber sobre Ele está pré- figurado em seus nomes.

Num determinado sentido, cada nome é igual à Essência, cada um deles é uma barzakh ou ponte entre a Essência e o cosmos, mas à medida que a Essência é incomparável, sem atributos e está além de todos os relacionamentos, os nomes divinos mostram as relações que a Essência mantém com o mundo.
Eles representam a Essência a partir do ponto de vista das várias relações especiais causadas pelo fenômeno da automanifestação.

Deus conhece os nomes, pois Ele conhece todo o objeto de conhecimento, enquanto nós conhecemos os nomes por meio da diversidade de seus efeitos dentro de nós

Nós o nomeamos tal e tal a partir do efeito daquilo que encontramos em nós mesmos
Assim, os efeitos são múltiplos dentro de nós, enquanto Deus é nomeado por eles. 
Por conseguinte eles são atribuídos a Ele, mas Ele não se torna múltiplo em Si-Mesmo por meio deles.

Na verdade, é o mundo criado que necessita dos nomes, e não o Absoluto.

O que define cada coisa particular no cosmos é a “privação do ser” que lhe é própria e em razão da qual ela é uma coisa delimitada (um cavalo, ou uma flor ou um homem) e não o Ser puro. 

Dessa forma, visto como uma entidade autônoma distinta do Ser Absoluto, o universo é uma quimera, pois não possui ser próprio.

É nesse sentido que Ibn’Arabī diz que o universo é uma ilusão, não possui existência real, o que é característico da imaginação.

Longe Perto e a dinâmica de gênero na Deidade

... Mas não me perguntem quem é esse Longe Perto, e quais são as obras que Ele realiza e suas operações quando ele mostra a glória à Alma, pois não se pode dizer nada exceto que o Longe Perto é a própria Trindade, e essa manifestação que ela opera para a alma, nós a chamamos “movimento”, não porque a Alma ou a Trindade se movam, mas porque a Trindade opera para essa alma a manifestação de sua glória.

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