-- De onde vens e para onde vais ?
-- Venho de Deus na escuridão e para Deus vou na Luz.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 4



         O espelho como metáfora
A literatura medieval apresenta inúmeros “Espelhos”,essa concepção do espelho repousa sobre uma idéia neoplatônica do cosmos que, em sua teoria da emanação, estabelece uma hierarquia de reflexos que fluem em cascata do Uno original até a matéria.  

A alma seria um reflexo da emanação do Uno e, ao possuir a imagem divina no espelho de sua alma, o ser humano poderia chegar ao conhecimento das realidades superiores através da introspecção.

Para os neoplatônicos, o espelho era também um instrumento de retorno que permitia à alma se elevar até o Uno para reencontrar-se, num sentido contrário à dispersão, com a origem da fonte de luz.

Pelo caminho da introspecção, era possível ver na alma um reflexo da imagem trinitária que seria vista um dia, no pós-vida, com os próprios olhos.
Por outro lado, o espelho era considerado um instrumento de retorno do qual Deus se serve para chamar a si as almas eleitas e restituir nelas sua imagem original. Além disso, as Escrituras e seu corpo exegético eram também considerados um espelho que permitia o acesso ao exemplo de Cristo, o verdadeiro espelho de Deus, ensinando uma via de purificação e de transformação.



A alma é como um espelho, que deve ser polido para reenviar o brilho do esplendor divino.” 
 
No espelho temos, portanto, um símbolo adequado para a polaridade divino-humana. 



O Espelho de Marguerite Porete

A alma é descrita como uma fonte pura, emitindo raios de luz
; a união da alma com Deus é representada pela conjunção de dois olhares, tanto de um para o outro, como de cada um para si mesmo.

Ao ler o livro, o leitor vê uma alma que funciona como um espelho para sua própria alma, que deve ser contemplado e imitado, e também como um reflexo de Deus
No início de sua busca, a alma “damoyselle” está distante de seu rei amado e, como símbolo especular, é ambivalente, um espelho que reflete uma visão dupla e de retorno, pois reflete a imperfeição humana e a perfeição divina, refletindo também a luz da presença divina e as considerações para alcançá-la. 

Para se tornar um espelho simples que reflete a simplicidade do Uno, a alma deve se despojar sistematicamente de todas as imagens de si mesma que ocultam a luz e velam o reflexo divino.

Ela deve sacrificar seu amor-próprio, sua vontade, sua individualidade distinta, seu amor criatural, enfim, todos os seus reflexos próprios para se tornar o reflexo de Deus

Só assim ela pode compreender que originalmente ela é a imagem de Deus e reencontrar, na imagem divina refletida, a sua origem perdida.

Contrariando os teólogos cristãos que afirmavam a impossibilidade de uma visão direta de Deus nesta vida, Marguerite Porete, por meio da aniquilação, concebe a possibilidade de transgredir o espelho para alcançar uma contemplação direta de Deus, uma visão face a face, que o texto chama de olhar simples.

A consequência dessa transgressão é a metamorfose do eu que se torna igual a Deus.

A alma entende que seu eu deve desaparecer para dar espaço ao desejo de Deus.

Ao atingir a aniquilação,
a alma não vê nem a si nem a Deus, “mas Deus se vê nela em sua majestade divina, que o clarifica nessa alma.”

A alma e Deus são espelhos um do outro graças à “clarificação” da alma: “Os olhos pelos quais vejo Deus são os olhos por onde ele me vê.”  
O espelho é simples porque é um auto-reflexo.

Os anjos da ordem superior seriam espelhos sem mácula, refletindo a luz divina que contemplam diretamente, difundindo-a e transmitindo-a aos anjos inferiores e, por meio deles, às almas. 
Hildegard de Bingen, por exemplo, descreveu os anjos como “um espelho de água límpida” que reflete Deus diretamente.

Marguerite Porete utiliza a noção de ascensão através de graus ao estabelecer os sete estágios da alma, as sete contemplações, os doze nomes da alma e os dois tipos de almas, nobres e vilãs.

Ela também faz alusão à hierarquia de anjos várias vezes, insistindo particularmente nos querubins e serafins, por sua capacidade de ver Deus. 
A alma aniquilada, segundo ela, tem o privilégio de se elevar mais alto mesmo que os serafins, “em cujas asas ela voa”.

No texto poretiano a alma aniquilada torna-se o espelho cristalino de Deus 
Ela é um “sol puro” e sem “mácula” pois é um espelho do sol divino.  
Ela é uma “lua plena” e irradia a luz recebida, que procede de seu “rei divino”.

Em última análise, essa alma é necessária a Deus, à medida que é um exemplo para todos e um espelho para a glória de Deus, pois ela é o instrumento de irradiação da bondade divina para as outras criaturas. 



 O espelho polido de Ibn’Arabī

Para os místicos sufis em geral, a imagem do polimento do espelho simboliza uma mudança de perspectiva que indica a superação das distinções entre sujeito e objeto. Ao olhar um espelho embaçado, quem olha vê o vidro. 
Contudo, se o espelho é polido, torna-se invisível, e apenas a imagem refletida de quem se contempla permanece, a visão se torna auto-visão

Ibn’Arabī refere a metáfora do espelho polido que se mescla à idéia do homem perfeito cujo modelo paradigmático é Adão, que representa a consciência humana capaz de realizar o polimento do espelho do cosmos e refletir para Deus a imagem do “tesouro oculto”, sua própria imagem.

Um hadith diz que Deus criou Adão “à sua imagem” e a interpretação de Ibn’Arabī é ver Adão como o modelo da união mística. Ele é a imagem do divino e, por seu conhecimento dos nomes divinos, é mais completo do que os anjos.

Para Ibn Arabi o cosmos é um espelho não-polido

Para que o espelho brilhe e para que os nomes divinos adquiram realidade, é necessário o Ser Humano Perfeito, o Eixo, o Vice-Regente ou o Califa de Deus na terra. 

O cosmos e o coração humano são o espelho do divino, mas esse espelho está nublado.                                                 
Na fanā’, o eu do místico que nubla o espelho é obliterado e o coração se torna um espelho polido, refletindo a imagem divina, ou um prisma, a partir do qual a luz indiferenciada da unidade divina é refratada nos vários atributos.
Nesse momento, o místico individual realiza a natureza primordial de Adão.

 A constituição da imagem divina se dá dentro do coração do homem perfeito, no momento da união mística, simbolizada pelo espelho polido que constitui a “Sua /sua” imagem, ou melhor, a imagem de ambos.

Na imagem do espelho polido, Ibn'Arabī junta o aspecto cosmogônico do ser humano completo, capaz de refletir todos os atributos divinos, com a aniquilação (fanā’) do eu na união mística.

O Real cria o mundo como um espelho não-polido.
Para completar o processo, é necessária a consciência humana para o polir o espelho e assim revelar o mistério através do espelho polido.
Para que o espelho seja polido, o humano (aquele que está polindo o espelho) deve ser "aniquilado".
Em termos místicos, os Nomes são concretizados no cosmos quando o eu humano é aniquilado e os Nomes aparecem no espelho polido do coração humano.

Do amor, da aniquilação e do espelho... 

A inebriação no amor dá lugar, no texto poretiano, a uma crítica das “delícias espirituais”, embora a autora reconheça que elas representam um estágio necessário no caminho para a aniquilação.

Ibn’Arabī, por sua vez, se utiliza de um mundo de linguagem característico da poesia amorosa profana pré-islâmica e islâmica, em que o tema do amor e da aniquilação se mesclam. 

O amante alterna o êxtase de sua presença com a agonia de sua ausência, numa poética de separação e união, e a união erótica dos poetas é utilizada para descrever a união mística do sufi. 

No discurso de Ibn Arabi, a dissolução da alma na conversação dos amantes reflete o apagamento dos traços do eu que o místico vivencia por meio da loucura do amor divino.

Em ambos, Marguerite Porete e Ibn’Arabī, Deus é o único amante e amado que permanece

A exaltação amorosa vai gradualmente conduzindo a um estado que envolve a aniquilação do criatural na alma, em que o vazio da alma e do nada divino se encontram numa experiência que pode ser descrita em termos de uma absoluta realização e uma absoluta privação, de pobreza e plenitude.

Porete repete que a perfeição final não pode ser alcançada até que o corpo e o mundo sejam deixados para trás, mas ainda assim afirma que uma absoluta inocência pode ser alcançada pela alma aqui na terra.

Ibn’Arabī, por sua vez, utiliza a poesia erótica e os temas eróticos profanos para analisar e exprimir a natureza do amor espiritual e audaciosamente, afirma que é Deus que se manifesta a todo amante, sob o véu de sua amada, que ele não a adoraria se ela não representasse a divindade.

Por isso, para Ibn Arabi, o amor sexual, entendido como a junção do amor natural e espiritual, serve de símbolo para o amor místico e é a maior manifestação de Deus que o conhecedor pode ter enquanto aqui na terra.

Para ambos os autores, é o Amor que ao final liberta a alma de todo desejo e de toda a vontade, permitindo que ela se torne novamente unida à Deidade.

 A experiência da alma no êxtase do amor deve ser superada, o próprio amor deve ser abandonado para que ela experiencie a constante presença da divindade. 

Ao se tornar o espelho de Deus, pode-se dizer que a alma experiencia Deus somente porque Deus é tudo que existe para ela e nela – de tal forma que ela não é nada, é somente Deus se experienciando nela

Tal alma nada mais deseja e não mais ama: ela dissolveu-se, fundiu-se na infinitude divina. 

O Amor e a alma tornam-se um só
 
Em seu poema final, Marguerite Porete se aproxima do poema de Ibn’Arabī sobre a perplexidade, citado acima. Nele, Porete sugere que a realidade do amado divino foi encontrada e que toda a exaltação amorosa foi resolvida em serena absorção:

Eu disse que o amarei. Menti, não sou Eu. É Ele só que me ama: Ele é, e eu não. E nada mais me falta que aquilo que Ele quer e que Ele deseja. Ele é pleno, e com isso estou plena. Esse é o núcleo divino e o amor leal.”

De maneira semelhante, em sua metáfora do espelho, Ibn’Arabī mostra o indivíduo que abriu mão de suas próprias imagens e se tornou uno com e na imagem divina refletida no espelho polido.  
Esse espelho polido é o coração do sufi, polido à medida que está vazio de suas próprias imagens e nomes projetados.  
Esse coração flutuante reflete o nada que, como um prisma, se pluraliza em múltiplas imagens, não podendo ser confinado por nenhuma.

Tanto a alma aniquilada quanto o homem perfeito são necessários a Deus, que se conhece e é conhecido por meio deles, sendo até mais elevados que os anjos – a alma livre e aniquilada é o modelo que espelha a bondade divina para as outras criaturas e a glória divina, e o homem perfeito, com o polimento do espelho, reflete e refrata a luz divina em múltiplos nomes.  

Sem ele, o mundo seria um espelho sem polimento.

Tanto para Marguerite Porete quanto para Ibn’Arabī, os movimentos do amor e da morte transformam a alma num espelho cristalino no qual o nada divino é refletido no nada do eu. 


A alma aniquilada e o homem perfeito, uma nobre elite

Porete afirma a nobreza e a liberdade de certas almas individuais. A alma, deificada pela transformação no amor, pode, enquanto alma terrena, alcançar uma união permanente com Deus.

Certas almas podem, então, realizar suas verdadeiras identidades como descendentes diretas da Trindade. Elas são receptáculos para a eleição divina.

Seu livro torna-se um espelho simples para aquelas que são da mesma “linhagem”.

Em seu diálogo com a Razão, a alma se refere à gente mesquinha, rude e inconveniente que vive sob o seu conselho, “bestas e asnos” que a fazem dissimular sua linguagem por sua grosseria. 
Para esses, ela não fala, com medo de que eles não encontrem a “morte no estado de vida”. 
É por isso que ela precisa usar uma linguagem cifrada para expressar o que aprendeu em segredo na “corte secreta do doce país”. 

Com certeza, para Porete, tais almas destituídas de nobreza e cortesia não fazem parte da elite do amor divino e da Igreja invisível que, para ela, sobrepuja a visível, mas que ainda assim serão salvas.

Amor continuamente avisa a alma para que ela não dissemine seus segredos entre aqueles que não são dignos e que vivem de acordo com a Razão.

Na perspectiva de Ibn Arabi , de forma análoga à de Porete, se todas as criaturas são o receptáculos de Deus, elas não o são de maneira igual.
É a sua “predisposição” essencial, a qual têm por toda a eternidade, que determina a sua capacidade de refletir, de modo mais ou menos amplo e fiel, o que se epifaniza. 

Segundo Ibn’Arabī, a água toma a cor do recipiente que a contém, e só o verdadeiro conhecedor transcende essa situação
Só o coração do homem perfeito, polido, é restituído à sua transparência original, sendo assim receptivo ao fluxo incessante das teofanias.

O homem perfeito serve a Deus sob o nome Allah, o não-delimitado, e sob nenhum outro nome. 

Em outras palavras, o servo perfeito, por meio de seu esvaecimento e de seu nada, manifesta todos os nomes divinos.
Os mortais comuns assumem vários traços dos nomes  em desequilíbrio, o que os conduz ao desvio das normas humanas e os impede de se elevarem além do nível de “homem animal”.

Ibn’Arabī estabelece três tipos entre aqueles que chama de Homens de Allah: os cultuadores, dominados pela renúncia, devoção constante e atos puros, que não vêem nada além dos trabalhos que realizam; os sufis, que além de mostrar os traços dos cultuadores vão além, vendo todos os atos como pertencentes a Deus (estes também vão além nos estados, estações, ciências, mistérios,desvelamentos e dons carismáticos); e finalmente o terceiro tipo, que ele denomina o Povo da Culpa, sobre o qual diz:

Eles não se distinguem dos fiéis que realizam as obrigações de Deus por nenhum estado extra pelo qual possam ser conhecidos. 
Eles andam nos mercados, falam com as pessoas, e nenhuma das criaturas de Deus vê nenhum deles se distinguindo das pessoas comuns por uma única coisa ... Eles estão sós com Deus, firmemente enraizados, não se afastando de sua servidão nem por um piscar de olhos ... Eles estão velados para as criaturas e permanecem ocultos delas pelo disfarce de gente comum

Pois são servos sinceros e devotados de seu Mestre.  

Eles O testemunham ao beber e ao comer, ao acordar e ao dormir, e ao falar com Ele entre as pessoas ... Eles mantêm para si externamente e internamente o nome pelo qual Deus os nomeou, isto é, “os pobres”.

A via da culpa ou os homens da culpa, os malāmyyia, são o povo da servidão absoluta.

Inegavelmente, tanto Marguerite Porete quanto Ibn’Arabī estabelecem uma hierarquia das almas humanas, uma aristocracia que por nobreza inata e graça divina é capaz de atingir o mais alto nível espiritual de união com o divino.

Inegavelmente também, ambos cifram suas mensagens, protegendo-as das bestas e dos asnos da Santa Igreja, a pequena, e dos exotéricos que montam asnos em vez de éguas, bem como das “almas mercadoras” e daqueles que não passam do nível de “homem animal”.  

Em Porete, é somente à medida que a alma se tornou nada, que desceu ao mais baixo dos baixos e aniquilou sua vontade, reconhecendo sua maldade total, é que ela é tudo, que recebe em si a total bondade divina.       

Em Ibn’Arabī, paradoxalmente, a realeza só se concretiza no homem perfeito quando ele atinge a servidão completa, quando, como “servo puro” e totalmente “pobre”, a possibilidade de uma escolha desapareceu, e Deus deseja por meio de sua vontade sem que ele saiba que aquilo que deseja é a mesma coisa que Deus deseja. 

É somente na mais completa aniquilação que a alma aniquilada e o homem perfeito realizam a sua nobreza.

Sem comentários:

Enviar um comentário