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terça-feira, 1 de abril de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī - Parte 3



A dialética do amor em Ibn’Arabī


O conhecimento no caminho místico islâmico é desvelado por Deus, sem a intermediação da reflexão ou de qualquer outra faculdade.

Eu mesmo experimentei a infinita sutileza que se pode encontrar no amor. Sentes um afeto intenso (‘ishq), uma paixão penetrante (hawā), um desejo ardente (shawq), um poder do amor (gharām), um esgotamento total (nuhūl), uma impossibilidade de conciliar o sono e de saborear a comida.  
Não sabes em quem e por quem ocorre. 
Teu Amado não se mostra a ti de maneira clara. Essa é a graça mais deleitável que senti por experiência própria.

O hadith do tesouro oculto: “Eu era um tesouro, mas não era conhecido, e eu amaria ser conhecido. Eu criei as criaturas e me fiz conhecido para elas, e assim elas vieram a me conhecer.”

No nível macrocósmico, a criação se origina do amor divino.
Do ponto de vista iniciático, o amor e o conhecimento, os termos fundamentais desse hadith, são distintos, mas inseparáveis e portanto não há razão para contrastá-los.

Uma das características do Amante, possuísse ele uma forma, é suspirar, já que nesse suspirar é encontrada a fruição do que é buscado. 
O Sopro emerge de uma raiz, que é o Amor pelas criaturas, às quais Ele desejou se fazer conhecido, para que elas pudessem conhecê-lo. Por conseguinte, a Nuvem veio a ser; ela é chamada o Real Através de Quem a Criação Acontece. A Nuvem é a substância do cosmos, assim ela recebe todas as formas, os espíritos, e as naturezas do cosmos; é um receptáculo ad infinitum.    
Essa é a origem de Seu amor por nós.

Quanto a nosso amor por Ele, sua origem é a audição e não a visão. 
São as suas palavras para nós – enquanto estávamos na substância da Nuvem –“Seja!” Portanto a Nuvem deriva de seu Sopro, enquanto as formas do que é chamado de cosmos derivam da palavra “Seja!”

O Hadith da beleza: “Deus é belo e Ele ama a beleza.”A beleza é o que atrai o amor, assim como o amor é atraído por tudo que é belo. O amor vem da epifania do nome al-Jāmil. Deus, que é belo, ama a Si mesmo.

O que Ibn Arabi entende por “amor divino” tem, então, dois aspectos

Por um lado é o desejo de Deus pela criatura, o suspiro apaixonado de Deus em sua essência (o tesouro oculto), ansiando por se manifestar em seres para ser revelado para eles e por eles; por outro lado, o amor divino é o desejo da criatura por Deus, ou “o suspiro de Deus epifanizado em seres e ansiando por retornar a ele.”

Para Ibn’Arabī, Deus, em seu amor pelas criaturas, na realidade ama apenas a Si mesmo, no sentido em que não há nada na existência exceto Ele. Por outro lado as criaturas não amam nada além de Deus, saibam ou não disso. Deus é o Amado real e Deus é também o único Amante.

A paixão amorosa, a perplexidade e o coração receptivo

Ibn’Arabī se refere ao ‘ishq, a paixão envolvente que cega o amante a tal ponto que só lhe permite enxergar a/o amada/o. Ele aqui se refere ao amor integral, o estado do “louco de amor”. Quando o amante místico não pode mais manter seu eu ou seus pensamentos, quando se esvazia de suas palavras e argumentos, a amada se revela. A loucura amorosa é análoga à perplexidade mística que ocorre quando os limites normais da identidade, da razão e da vontade são dissolvidos. Contudo, na poesia amorosa de Ibn’Arabī, o verdadeiro amor conduz a um estado de aniquilação no qual não se deseja possuir mais nada, pois na consumação do desejo, na união, já não há mais um eu que tenha a experiência.

A noção de que o amor implica abandonar qualquer esforço para possuir a amada está presente na teoria do amor na poesia árabe e no sufismo.

A natureza efêmera das aparições da amada se reflete na vida daqueles que vivem apenas por meio da sua presença e é uma contínua fonte de halāk (o perecimento do amante), de h(ayra (a perplexidade) e também da loucura amorosa.

Outro tema recorrente nos poemas de Ibn’Arabī, é a face fatal da beleza. O amante é morto pelas setas dos olhos da amada, golpeado pelo lampejo cintilante de seus dentes, atingido pelo arco de suas sombrancelhas.

Nos poemas de Ibn’Arabī, transparece sempre a idéia da morte por amor, refletindo a noção do poeta-amante mártir do amor.
A loucura amorosa se equipara à perplexidade mística quando o eu, na estação final, afunda em seu amor até que não tenha mais o sentimento de si ou mesmo de seu amor.
Nesse momento de aniquilação (fanā’), sua identidade se funde à da amada, e o divino cobre as faculdades humanas com sua atividade perceptiva.
O divino se revela nas faculdades obliteradas e divinamente ocupadas do sufi na fase de retorno ou permanência (baqā’).
Aproximar-se da presença divina é perder a consciência de sua própria proximidade na “aniquilação da aniquilação”, ou seja, na aniquilação da consciência de estar passando pela aniquilação.
 
Esse movimento é entremeado pela poética de separação e de união com a amada, de uma forma que lembra a dinâmica do amor cortês de Porete, com seu amado Longe Perto.  
No diálogo sufi entre o divino e o humano, a união mística é rodeada por extremos de tensão psicológica e semântica, havendo oscilações entre estados de paz e êxtase e estados de terror e dissolução.

A oscilação está relacionada ao paradoxo de que, no momento que antecede a união, o mais próximo é o mais distante.
A peregrinação que ocorre nos poemas retrata a oscilação dinâmica entre a existência do indivíduo fora da união, existência que provoca a consciência da separação, e a extinção do indivíduo na união.

A morte do amante pela amada, uma imagem que os sufis utilizam para expressar a morte do eu na experiência de aniquilação.

Ao identificar o amante pasmo e aniquilado por amor com o místico sufi em sua perplexidade, aniquilado na fanā’, Ibn’Arabī evoca a tristeza essencial dessa tradição, na qual a/o amada/o está sempre já perdida/o.

No momento da aniquilação mística, quando o coração é preenchido com a visão, a audição e a fala divinas, o místico atinge a “estação de nenhuma estação” e com isso, a capacidade de transformação do coração, que pode não só abraçar qualquer imagem como uma nova manifestação do divino, mas também desistir de toda imagem e de todo “atamento”.

Ibn’Arabī sutilmente critica até mesmo os “amantes” (muhhib) de Deus, que permanecem enlevados por Sua beleza, contrastando-os com o conhecedor ou homem perfeito, que permanece sóbrio e tremulo em face da maior auto-manifestação de Deus.

O coração que está vazio de diversidade está preenchido por Deus, possuindo a amplitude e a generosidade para receber a Realidade em qualquer forma que ela se revele.”

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