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segunda-feira, 31 de março de 2014

A aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’Arabī -Parte 2



A mistica cortesã de 
              Marguerite Porete
Na teologia mística de Porete, assim como no pensamento cristão tradicional, Deus está identificado com o amor, portanto uma representação de seu amor é uma representação do próprio Deus.

Os temas principais da literatura cortês e os atributos do fin amour são encontrados em seu livro. 


O ideal de Marguerite Porete, a alma livre e aniquilada, dá tudo o que é e tem ao seu Amado, sans nul pourquoi.  
Espelhando os atributos da dona cortês, que por vezes é cruel e ciumenta, Porete chega a chamar Deus de “Muito Grande Invejoso”, já que Ele toma da alma até seu próprio eu para lhe dar em troca uma “magistrale franchise”, a verdadeira liberdade.

Porete também utiliza as imagens do êxtase-ravissement, referindo-se à “Centelha de Luz arrebatadora que se junta a ela, segurando-a bem perto” ou ao “Mais elevado Arrebatador que a toma e se junta a ela na essência do Amor divino no qual ela se funde.”

A linguagem cortês de Porete se funde com a linguagem apofática da união mística, na qual a união com o Amor e dentro do Amor é um êxtase que inclui imagens como o desnudar-se, a nudez, a perda da discrição, a perda da vergonha e o abandono.

A alma abandona sua honra, despindo-se de sua vontade, e a união com o amante divino acontece em nudez total.

Na concepção das outras béguines citadas, a união nupcial acontecia no início da jornada mística, mas apenas como prenúncio da consumação futura. 
Após a união inicial, Deus seduz a alma, aliciando-a para um compromisso total que, mais tarde, se mostra amargo e doloroso.

Deus o Noivo então se retira e só resta à amante provar sua lealdade por meio de um longo período de sofrimento que, para ela, equivale à “humanidade de Cristo”.

Porete diz que o amor, ou seja, os movimentos afetivos e psicológicos que a alma partilha com o amor cortês, “mantém a alma enganada pela doçura do prazer.”
Ela, a alma, não percebe que há outros dois estágios mais “nobres” e “elevados” e que não se deve deixar ’ficar-prender’ na doçura do momento.

Quando se espera uma imersão nas delícias do amor cortês, Marguerite Porete vai além desse estágio.
A alma ainda não se tornou livre, pois para isso é preciso que se despoje dos últimos traços de auto-referência.
Refletindo sobre esse estado de amor psicológico, que ela associa com a vida do espírito, Porete comenta que “ela (a alma) pensa que possui esse amor por Deus, por quem ela é ferida; mas, na verdade, é a si mesma que ela ama, sem o saber ou perceber.” 

A alma que é chamada para a vida verdadeiramente nobre e livre, ao atingir esse estágio de inebriação no Amor, não retorna para os exercícios anteriores: oração, jejum, missas, sermões e obras de virtude. 
O próprio Amor diz: “Como há uma grande diferença entre a dádiva do bem-amado para a bem-amada por meio de um intermediário e o que é dado do bem-amado à bem-amada sem intermediário!”

A alma, portanto, abandona as virtudes e segue adiante, passando por uma “morte do espírito” e “caindo do amor no nada”, onde se encontra num estado de permanente união com Deus.

“Seus dias como fin amant ou como amie terminaram, pois ela própria se tornou o fin amour. 
Daqui em diante ela é una com a Trindade, Deus, por direito do amor.”

Contrariando a tradição do canto cortês no qual Deus , a Dona é inatingível e o culto amoroso é permanente, Marguerite Porete mostra uma alma cujo serviço cessa após os três primeiros níveis de elevação espiritual, pois ela se transforma naquele/a que ela ama, por meio de uma união de amor. 


A abjeção em Marguerite Porete 
 

Central é a descida do amante para a abjeção, que termina com a mais completa negação do eu.

O Amor progressivamente paralisa o pensamento e a ação até o ponto em que o amante se torna totalmente incapacitado e não pode mais se satisfazer nem mesmo na presença do amado.
Nesse ponto, o desejo torna-se infinito e muitas vezes se transforma em seu contrário, envolvendo o desespero e o ódio, pois nada pode satisfazer o desejo amoroso mútuo. 

O mito de Tristão e Isolda, enfatiza o anseio místico dos amantes pelo infinito e também o caráter anti-social e a busca da morte implícitos em seu amor. 
O amante de Deus também deve enfrentar esse amor sem esperança de paz e que impele para a morte nos mais altos estágios da vida mística.

O objetivo final era destruir qualquer senso de ipseidade
, qualquer eu exceto o divino.

Marguerite Porete ao invés de “abraçar a ausência do Amado como uma união mais perfeita, escolhe estar ela  mesma ausente. 
Ela desocupa o espaço psicológico que ocupava de uma vez e para sempre (“suicídio metafísico”) , fazendo nele uma corte para o fine amour.

Ao atingir o quarto estágio do êxtase amoroso e perceber seu engano, a Alma se dá conta da necessidade de extinguir toda vontade e também o seu amor para atingir o estado de união que aspira.
Para se tornar verdadeiramente livre, a alma dispensa as obras, as virtudes e as mortificações, mas imagina uma série de “demandes d’amour” cruéis, para avaliar o quão completa é a sua submissão ao seu Amado, demandes que visam uma mortificação do desejo e que a levam a abandonar o seu amor humano. 

É apenas ao consentir no impensável e após a rendição incondicional às provas impostas pelo Amado que ela pode receber dele uma recompensa incondicional.
Nesse sentido, Marguerite Porete tanto utiliza quanto desconstrói a tradição cortês, retratando provas de amor nas quais a alma é de tal maneira desafiada pelo Amor que termina por ser levada à aniquilação.

É dessa maneira que a vontade da alma chega ao fim, pelo martírio tanto de seu desejo quanto de seu amor e ela cai no nada. 

O Amor exige que a alma aniquile o próprio amor.
Tudo o que é próprio da alma, tudo o que é criatural, deve ser destruído para a obtenção do estado de liberdade para o qual o Amor a chama.
Não é à toa também que Porete nomeia seu amado de Longe Perto, que é em si uma contradição, indicando uma presença que é também uma ausência. Ele permanece com um desejo de presença que nunca é totalmente satisfeito, um desejo indefinidamente adiado, que se tornaria insaciável se não fosse pela apófase do desejo presente no texto.

Porete acreditava que muitos de seus contemporâneos permaneciam aprisionados a esse estágio de inebriação apaixonada. Essas são as “almas perdidas”, que ao invés de aceitarem a ausência como uma parte intrínseca da união com Deus, tentam trazer de volta a experiência desse encontro por meio do sofrimento, do ascetismo, das obras e da contemplação.

No final, os termos que permitem uma relação psicológica com Deus são queimados, afogados e aniquilados precisamente por esse Amor que se torna nesse momento o Amor do único Amante que permanece: Deus. 

Explicando à Razão qual a vontade que trabalha na alma aniquilada, Dame Amour diz:
Não é a sua vontade que deseja, mas é a vontade de Deus que deseja nela
Porque essa alma não permanece no amor que impulsiona sua vontade para algum desejo.  
É o Amor que permanece nela, que a privou de sua vontade e, portanto, o amor realiza sua vontade com ela, e o amor trabalha nela sem ela, por isso nenhuma ansiedade permanece nela.

A abjeção de Marguerite Porete é, num sentido ontológico, absoluta.  
Porete exige que a alma se aniquile por meio da destruição de sua vontade.
A “mendiant creature”, como ela se auto-intitula, que ansiava por Deus nessa vida e não o encontrava, torna-se uma alma aniquilada e como tal ela não mais existe.

A alma aniquilada e o Fin Amour não são mais eus separados, mas permanecem indistintos em tranqüilidade.

Em contraste com o estado precedente de amor violento e de luta com sua vontade, a transformação da alma em Amor nesse estágio é acompanhada de paz. 
A relação erótica de uma espiritualidade menos madura, agora tornou-se o Uno”
Por isso, para Porete, não há necessidade de tormentos corporais e demonstrações públicas de humilhação, comuns nas vidas dos santos e de outras béguines.

Porete rejeita os caminhos do sofrimento do corpo e da alma. 
Em contrapartida, exige a renúncia de tudo que é criatural.

Só assim é possível para a alma superar o sofrimento causado pela aparente ausência de Deus – por meio da aniquilação que torna a presença divina aparente. 
Quando a alma reencontra seu fundamento incriado no divino, o sofrimento e a alienação são suplantados, e ela é transfigurada no amor.

É somente dessa forma que a alma recebe asas, como os serafins–ela pode deixar o “étrange pays” e retornar à corte de seu amado Rei, pois a aniquilação é uma “terra” para onde as almas tristes e caídas podem retornar. 

Nessa “terra”, a alma não tem mais nenhuma “relação” com Deus, nem mesmo de amor

Esse é o resultado final de todo o seu amor.


O sufismo, o amor e a linguagem de união 
 
No sufismo, a linguagem de amor utilizada para expressar a busca por Deus resulta da interação com a herança cultural pré-islâmica.

A poesia amorosa passou a ser um veículo para a expressão do evento de união mística e nessa linguagem, os temas da relembrança da amada, da loucura amorosa, da perplexidade, dos paradoxos que envolvem a identidade das duas partes são recorrentes, bem como os temas da embriaguez e do amor, sempre ambíguos nas alusões ao amado.

Em geral, a tradição poética se inspira no caso de amor que se iniciava quando as tribos de beduínos se encontravam nos campos e se rompia quando as tribos se separavam no esforço anual para buscar outras pastagens
As ruínas abandonadas do acampamento tornam-se o símbolo que evoca a lembrança da união com ela e de sua ausência atual, símbolo que origina o poema inteiro.

O poeta lembra as estações da jornada da amada em seu afastamento e as lista como se fossem estações de sua peregrinação. A memória da amada conduz por fim a um devaneio lírico, com imagens de fontes, de oásis, de animais em placidez, enfim, do jardim edênico que simboliza a amada perdida.

A busca ou “jornada noturna” começava no momento em que o poeta rompia seu devaneio e se aventurava sózinho através do deserto, seguindo o caminho da amada.

Aqui são evocados o implacável calor do dia, o terror da noite, a fome, a privação, a desorientação da jornada e o confronto com a mortalidade.
O desvanecimento do eu do poeta era freqüentemente simbolizado pela magreza do camelo que ele usava como montaria.

Finalmente, a última seção do poema, a louvação, mostrava a reintegração do poeta em sua tribo e o canto dos valores tribais de generosidade e de coragem na guerra e frente à morte.

A poesia amorosa sufi, analogamente, reflete a impotência do sujeito para apreender a amada, para abarcá-la. 
A relembrança da amada é fonte inspiradora tanto para o poeta quanto para o sufi. 
O poeta que repete, implorando, o nome da amada, chave simbólica da totalidade que deseja apreender, se reflete no dikhr, a constante relembrança do nome de Deus a que se dedica o sufi.

A infinitude do desejo é modulada pela inabilidade do poeta em controlar o fluxo de emoção, memória e associação. Uma única referência a um aspecto da amada perdida – o perfume de seu cabelo, o gosto de sua boca, o brilho de seus dentes ao sorrir – era o suficiente para originar longas digressões, nas quais se encontra uma sensualidade velada, mas intensa. 

Essa infinitude do desejo origina uma retórica digressiva de descrição da amada, que mascara a inabilidade do poeta em capturar a amada por meio de qualquer definição de suas características. Quanto mais fala da amada, mais e mais o poema percorre uma cadeia associativa que se distancia de qualquer imagem dela, até que finalmente ela é descrita como o jardim perdido.

Tanto na literatura poética quanto no sufismo, o desejo tende ao infinito.
À medida que a amada se encontra próxima, o poeta fica desorientado ou perde a consciência pela intensidade da proximidade. 
O desejo do amante é tão intenso que se e quando se encontra na presença da amada, ele perde a consciência, ou desmaia, e nunca a vê de fato
Porém, se ela está distante, o poeta se encontra igualmente num estado de anseio.

Ela é “tanto a cura quanto a doença”.
Ao mesmo tempo, esse anseio infinito faz dos vestígios do acampamento da amada - um símbolo do exílio
Na civilização islâmica e no sufismo, as ruínas do acampamento da amada tornam-se os traços da terra natal perdida.

Não há para a amada inscrição num código inteligível. Ela é retratada como constantemente mudando de forma, aparecendo ao amante em miragens que o desencaminham e o conduzem à destruição.

Ao final da jornada, quando descrevem a fase da união mística, os sufis a comparam ao apagamento dos traços do eu individual e evocam os traços da permanência da amada nos acampamentos. 
O poeta, que perde a razão em virtude da união e da separação da amada, se confronta com o mesmo paradoxo, pois a união envolve a perda dos limites normais do eu.   

De forma semelhante, o sufi, em sua fanā’, não encontra mais um sujeito humano individual a quem se possa referir como alguém que alcançou a união.

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