A mistica cortesã de
Marguerite Porete
Na teologia mística de Porete, assim como no pensamento cristão tradicional, Deus está identificado com o amor, portanto uma representação de seu amor é uma representação do próprio Deus.
Os temas principais da literatura cortês e os atributos do fin amour são encontrados em seu livro.
Na teologia mística de Porete, assim como no pensamento cristão tradicional, Deus está identificado com o amor, portanto uma representação de seu amor é uma representação do próprio Deus.
Os temas principais da literatura cortês e os atributos do fin amour são encontrados em seu livro.
O ideal de Marguerite Porete, a alma livre e aniquilada, dá tudo o que é
e tem ao seu Amado, sans nul pourquoi.
Espelhando os atributos da dona cortês, que por
vezes é cruel e ciumenta, Porete chega a chamar Deus de “Muito Grande Invejoso”,
já que Ele
toma da alma até seu próprio eu para
lhe dar em
troca uma “magistrale franchise”, a
verdadeira liberdade.
Porete também utiliza as imagens do êxtase-ravissement, referindo-se à “Centelha de Luz arrebatadora que se junta a ela, segurando-a bem perto” ou ao “Mais elevado Arrebatador que a toma e se junta a ela na essência do Amor divino no qual ela se funde.”
A linguagem cortês de Porete se funde com a linguagem apofática da união mística, na qual a união com o Amor e dentro do Amor é um êxtase que inclui imagens como o desnudar-se, a nudez, a perda da discrição, a perda da vergonha e o abandono.
Porete também utiliza as imagens do êxtase-ravissement, referindo-se à “Centelha de Luz arrebatadora que se junta a ela, segurando-a bem perto” ou ao “Mais elevado Arrebatador que a toma e se junta a ela na essência do Amor divino no qual ela se funde.”
A linguagem cortês de Porete se funde com a linguagem apofática da união mística, na qual a união com o Amor e dentro do Amor é um êxtase que inclui imagens como o desnudar-se, a nudez, a perda da discrição, a perda da vergonha e o abandono.
A alma abandona sua honra, despindo-se de sua vontade, e a
união com o amante divino acontece em nudez total.
Na concepção das outras béguines citadas, a união nupcial acontecia no início da jornada mística, mas apenas como prenúncio da consumação futura.
Na concepção das outras béguines citadas, a união nupcial acontecia no início da jornada mística, mas apenas como prenúncio da consumação futura.
Após a união inicial, Deus seduz a alma,
aliciando-a para um compromisso total que, mais tarde, se mostra amargo e doloroso.
Deus o Noivo então se retira e só resta à amante provar sua
lealdade por meio de um longo período de sofrimento que, para ela, equivale
à “humanidade de Cristo”.
Porete diz que o amor, ou seja, os movimentos afetivos e psicológicos que a alma partilha com o amor cortês, “mantém a alma enganada pela doçura do prazer.”
Porete diz que o amor, ou seja, os movimentos afetivos e psicológicos que a alma partilha com o amor cortês, “mantém a alma enganada pela doçura do prazer.”
Ela, a alma, não percebe que há outros dois estágios mais
“nobres” e “elevados” e que não se deve deixar ’ficar-prender’ na doçura do
momento.
Quando se espera uma imersão nas delícias do amor cortês, Marguerite Porete vai além desse estágio.
Quando se espera uma imersão nas delícias do amor cortês, Marguerite Porete vai além desse estágio.
A alma ainda não se tornou livre, pois para isso é preciso
que se despoje dos últimos traços de auto-referência.
Refletindo sobre esse estado de amor psicológico, que ela
associa com a vida do espírito, Porete comenta que “ela (a alma) pensa que possui esse amor por
Deus, por quem ela é ferida; mas, na verdade, é a si
mesma que ela ama, sem o saber ou perceber.”
A alma que é chamada para a vida verdadeiramente nobre e
livre, ao atingir esse estágio de inebriação no Amor, não retorna para os exercícios anteriores:
oração, jejum, missas, sermões e obras de virtude.
O próprio Amor diz: “Como há
uma grande diferença entre a dádiva do bem-amado para a bem-amada por meio de
um intermediário e o que é dado do bem-amado à bem-amada sem intermediário!”
A alma, portanto, abandona as virtudes e segue adiante, passando por uma “morte do espírito” e “caindo do amor no
nada”, onde se encontra num estado de permanente união com Deus.
“Seus dias como fin amant ou como amie terminaram, pois ela própria se tornou o fin amour.
“Seus dias como fin amant ou como amie terminaram, pois ela própria se tornou o fin amour.
Daqui em diante ela é una com a Trindade, Deus, por direito do
amor.”
Contrariando a tradição do canto cortês no qual Deus , a Dona é inatingível e o culto amoroso é permanente, Marguerite Porete mostra uma alma cujo serviço cessa após os três primeiros níveis de elevação espiritual, pois ela se transforma naquele/a que ela ama, por meio de uma união de amor.
Contrariando a tradição do canto cortês no qual Deus , a Dona é inatingível e o culto amoroso é permanente, Marguerite Porete mostra uma alma cujo serviço cessa após os três primeiros níveis de elevação espiritual, pois ela se transforma naquele/a que ela ama, por meio de uma união de amor.
A abjeção em Marguerite Porete
Central é a descida do amante para a abjeção, que termina com a mais completa negação do eu.
O Amor progressivamente paralisa o pensamento e a ação até o ponto em que o amante se torna totalmente incapacitado e não pode mais se satisfazer nem mesmo na presença do amado.
Nesse ponto, o desejo
torna-se infinito e muitas vezes se transforma em seu contrário, envolvendo o
desespero e o ódio, pois nada pode satisfazer o desejo amoroso mútuo.
O mito de Tristão e Isolda, enfatiza o anseio místico dos amantes pelo infinito e também o caráter anti-social e a busca da morte
implícitos em seu amor.
O amante de Deus também deve enfrentar esse amor sem esperança de paz e que
impele para a morte nos mais altos estágios da vida mística.
O objetivo final era destruir qualquer senso de ipseidade, qualquer eu exceto o divino.
Marguerite Porete ao invés de “abraçar a ausência do Amado como uma união mais perfeita, escolhe estar ela mesma ausente.
O objetivo final era destruir qualquer senso de ipseidade, qualquer eu exceto o divino.
Marguerite Porete ao invés de “abraçar a ausência do Amado como uma união mais perfeita, escolhe estar ela mesma ausente.
Ela desocupa o espaço psicológico que ocupava de uma vez e para sempre (“suicídio
metafísico”) , fazendo nele uma corte para o fine amour.”
Ao atingir o quarto estágio do êxtase amoroso e perceber seu engano, a Alma se dá conta da necessidade de extinguir toda vontade e também o seu amor para atingir o estado de união que aspira.
Ao atingir o quarto estágio do êxtase amoroso e perceber seu engano, a Alma se dá conta da necessidade de extinguir toda vontade e também o seu amor para atingir o estado de união que aspira.
Para se tornar verdadeiramente livre, a alma dispensa as
obras, as virtudes e as mortificações, mas imagina uma série de “demandes
d’amour” cruéis, para avaliar o quão completa é a sua submissão ao seu Amado, demandes que visam uma mortificação do
desejo e que a levam a abandonar o
seu amor humano.
É apenas ao consentir no impensável e após a rendição incondicional às provas impostas pelo Amado que ela pode receber dele uma
recompensa incondicional.
Nesse sentido, Marguerite Porete tanto utiliza quanto desconstrói
a tradição cortês, retratando provas de amor nas quais a alma é de tal maneira
desafiada pelo Amor que termina por ser levada à aniquilação.
É dessa maneira que a vontade da alma chega ao fim, pelo martírio tanto de seu desejo quanto de seu amor e ela cai no nada.
É dessa maneira que a vontade da alma chega ao fim, pelo martírio tanto de seu desejo quanto de seu amor e ela cai no nada.
O Amor exige que a alma aniquile o próprio amor.
Tudo o que é próprio da alma, tudo o que é criatural, deve
ser destruído para a obtenção do
estado de liberdade para o qual o Amor a chama.
Não é à toa também que Porete nomeia seu amado de Longe
Perto, que é em si uma contradição, indicando uma presença que é também uma ausência.
Ele permanece com um desejo de presença que nunca é totalmente satisfeito, um
desejo indefinidamente adiado, que se tornaria insaciável se não fosse pela
apófase do desejo presente no texto.
Porete acreditava que muitos de seus contemporâneos permaneciam aprisionados a esse estágio de inebriação apaixonada. Essas são as “almas perdidas”, que ao invés de aceitarem a ausência como uma parte intrínseca da união com Deus, tentam trazer de volta a experiência desse encontro por meio do sofrimento, do ascetismo, das obras e da contemplação.
No final, os termos que permitem uma relação psicológica com Deus são queimados, afogados e aniquilados precisamente por esse Amor que se torna nesse momento o Amor do único Amante que permanece: Deus.
Porete acreditava que muitos de seus contemporâneos permaneciam aprisionados a esse estágio de inebriação apaixonada. Essas são as “almas perdidas”, que ao invés de aceitarem a ausência como uma parte intrínseca da união com Deus, tentam trazer de volta a experiência desse encontro por meio do sofrimento, do ascetismo, das obras e da contemplação.
No final, os termos que permitem uma relação psicológica com Deus são queimados, afogados e aniquilados precisamente por esse Amor que se torna nesse momento o Amor do único Amante que permanece: Deus.
Explicando à Razão qual a vontade que trabalha na alma
aniquilada, Dame Amour diz:
Não é a sua vontade que deseja, mas é a vontade de Deus que deseja nela.
Não é a sua vontade que deseja, mas é a vontade de Deus que deseja nela.
Porque
essa alma não permanece no amor que impulsiona sua vontade para algum desejo.
É o Amor que
permanece nela, que a privou de sua vontade e, portanto, o amor realiza sua
vontade com ela, e o amor trabalha nela sem ela, por isso nenhuma ansiedade
permanece nela.
A abjeção de Marguerite Porete é, num sentido ontológico, absoluta.
A abjeção de Marguerite Porete é, num sentido ontológico, absoluta.
Porete exige que
a alma se aniquile por meio da destruição de sua vontade.
A “mendiant creature”, como ela se auto-intitula, que
ansiava por Deus nessa vida e não o encontrava, torna-se uma alma aniquilada e como tal ela não
mais existe.
A alma aniquilada e o Fin Amour não são mais eus separados, mas permanecem indistintos em tranqüilidade.
Em contraste com o estado precedente de amor violento e de luta com sua vontade, a transformação da alma em Amor nesse estágio é acompanhada de paz.
A alma aniquilada e o Fin Amour não são mais eus separados, mas permanecem indistintos em tranqüilidade.
Em contraste com o estado precedente de amor violento e de luta com sua vontade, a transformação da alma em Amor nesse estágio é acompanhada de paz.
“A relação
erótica de uma espiritualidade menos madura, agora tornou-se o Uno”.
Por isso, para Porete, não há necessidade de tormentos corporais e demonstrações
públicas de humilhação, comuns nas vidas dos santos e de outras
béguines.
Porete rejeita os caminhos do sofrimento do corpo e da alma.
Porete rejeita os caminhos do sofrimento do corpo e da alma.
Em contrapartida, exige a renúncia de tudo que é criatural.
Só assim é possível para a alma superar o sofrimento causado pela aparente ausência de Deus – por meio da aniquilação que torna a presença divina aparente.
Só assim é possível para a alma superar o sofrimento causado pela aparente ausência de Deus – por meio da aniquilação que torna a presença divina aparente.
Quando a alma reencontra seu fundamento incriado no divino, o
sofrimento e a alienação são suplantados, e ela é transfigurada no amor.
É somente dessa forma que a alma recebe asas, como os serafins–ela pode deixar o “étrange pays” e retornar à corte de seu amado Rei, pois a aniquilação é uma “terra” para onde as almas tristes e caídas podem retornar.
É somente dessa forma que a alma recebe asas, como os serafins–ela pode deixar o “étrange pays” e retornar à corte de seu amado Rei, pois a aniquilação é uma “terra” para onde as almas tristes e caídas podem retornar.
Nessa “terra”, a alma não tem mais nenhuma “relação” com
Deus, nem mesmo de amor.
Esse é o resultado final de todo o seu
amor.
O sufismo, o amor e a
linguagem de união
No sufismo, a linguagem de amor utilizada para expressar a busca por Deus resulta da interação com a herança cultural pré-islâmica.
A poesia amorosa passou a ser um veículo para a expressão do evento de união mística e nessa linguagem, os temas da relembrança da amada, da loucura amorosa, da perplexidade, dos paradoxos que envolvem a identidade das duas partes são recorrentes, bem como os temas da embriaguez e do amor, sempre ambíguos nas alusões ao amado.
Em geral, a tradição poética se inspira no caso de amor que se iniciava quando as tribos de beduínos se encontravam nos campos e se rompia quando as tribos se separavam no esforço anual para buscar outras pastagens.
As
ruínas abandonadas
do acampamento tornam-se o símbolo que evoca a lembrança da união com ela e de sua ausência atual, símbolo que origina o
poema inteiro.
O poeta lembra as estações da jornada da amada em seu afastamento e as lista como se fossem estações de sua peregrinação. A memória da amada conduz por fim a um devaneio lírico, com imagens de fontes, de oásis, de animais em placidez, enfim, do jardim edênico que simboliza a amada perdida.
A busca ou “jornada noturna” começava no momento em que o poeta rompia seu devaneio e se aventurava sózinho através do deserto, seguindo o caminho da amada.
Aqui são evocados o implacável calor do dia, o terror da noite, a fome, a privação, a desorientação da jornada e o confronto com a mortalidade.
O desvanecimento do eu do poeta era freqüentemente simbolizado pela magreza do camelo que ele usava como montaria.
Finalmente, a última seção do poema, a louvação, mostrava a reintegração do poeta em sua tribo e o canto dos valores tribais de generosidade e de coragem na guerra e frente à morte.
A poesia amorosa sufi, analogamente, reflete a impotência do sujeito para apreender a amada, para abarcá-la.
O poeta lembra as estações da jornada da amada em seu afastamento e as lista como se fossem estações de sua peregrinação. A memória da amada conduz por fim a um devaneio lírico, com imagens de fontes, de oásis, de animais em placidez, enfim, do jardim edênico que simboliza a amada perdida.
A busca ou “jornada noturna” começava no momento em que o poeta rompia seu devaneio e se aventurava sózinho através do deserto, seguindo o caminho da amada.
Aqui são evocados o implacável calor do dia, o terror da noite, a fome, a privação, a desorientação da jornada e o confronto com a mortalidade.
O desvanecimento do eu do poeta era freqüentemente simbolizado pela magreza do camelo que ele usava como montaria.
Finalmente, a última seção do poema, a louvação, mostrava a reintegração do poeta em sua tribo e o canto dos valores tribais de generosidade e de coragem na guerra e frente à morte.
A poesia amorosa sufi, analogamente, reflete a impotência do sujeito para apreender a amada, para abarcá-la.
A relembrança da amada é fonte inspiradora tanto para o poeta
quanto para o sufi.
O poeta que repete, implorando, o nome da amada, chave
simbólica da totalidade que deseja apreender, se reflete no dikhr, a constante
relembrança do nome de Deus a que se dedica o sufi.
A infinitude do desejo é modulada pela inabilidade do poeta em controlar o fluxo de emoção, memória e associação. Uma única referência a um aspecto da amada perdida – o perfume de seu cabelo, o gosto de sua boca, o brilho de seus dentes ao sorrir – era o suficiente para originar longas digressões, nas quais se encontra uma sensualidade velada, mas intensa.
A infinitude do desejo é modulada pela inabilidade do poeta em controlar o fluxo de emoção, memória e associação. Uma única referência a um aspecto da amada perdida – o perfume de seu cabelo, o gosto de sua boca, o brilho de seus dentes ao sorrir – era o suficiente para originar longas digressões, nas quais se encontra uma sensualidade velada, mas intensa.
Essa infinitude do desejo origina uma retórica digressiva de
descrição da amada, que mascara a inabilidade do poeta em capturar a amada por
meio de qualquer definição de suas características. Quanto mais fala da amada,
mais e mais o poema percorre uma cadeia associativa que se distancia de
qualquer imagem dela, até que finalmente ela é descrita como o jardim perdido.
Tanto na literatura poética quanto no sufismo, o desejo tende ao infinito.
Tanto na literatura poética quanto no sufismo, o desejo tende ao infinito.
À medida que a amada se encontra próxima, o poeta fica
desorientado ou perde a consciência pela
intensidade da proximidade.
O desejo do amante é tão intenso que se e quando se encontra na presença da amada, ele
perde a
consciência, ou desmaia, e nunca a vê de fato.
Porém, se ela está distante, o poeta se encontra igualmente num estado de
anseio.
Ela é “tanto a cura quanto a doença”.
Ela é “tanto a cura quanto a doença”.
Ao mesmo tempo, esse anseio infinito
faz dos vestígios do acampamento da amada - um símbolo do exílio.
Na
civilização islâmica e no sufismo, as ruínas do acampamento da amada tornam-se os traços da
terra natal perdida.
Não há para a amada inscrição num código inteligível. Ela é retratada como constantemente mudando de forma, aparecendo ao amante em miragens que o desencaminham e o conduzem à destruição.
Ao final da jornada, quando descrevem a fase da união mística, os sufis a comparam ao apagamento dos traços do eu individual e evocam os traços da permanência da amada nos acampamentos.
Não há para a amada inscrição num código inteligível. Ela é retratada como constantemente mudando de forma, aparecendo ao amante em miragens que o desencaminham e o conduzem à destruição.
Ao final da jornada, quando descrevem a fase da união mística, os sufis a comparam ao apagamento dos traços do eu individual e evocam os traços da permanência da amada nos acampamentos.
O poeta, que perde a razão em virtude da união e da separação
da amada, se confronta com o mesmo paradoxo, pois a união envolve a perda dos limites normais do
eu.
De
forma semelhante, o sufi, em sua fanā’, não encontra mais um sujeito humano individual a quem se
possa referir como alguém que alcançou a união.
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