Caim e o assassinio do ego.
A única maneira de resolver a crise existencial do homem é matar (no sentido não de ’acabar com’ mas
de ‘ter com rédeas bem controladas’) sem piedade o eu, esse pequeno núcleo da
nossa consciencia que é, contudo, tão duro de vencer.
Mas sem essa morte o ser
humano não pode conhecer a grandeza do ser cósmico, Deus ou equivalente.
O
assassínio do ego, simbolizado na história biblica de Abel e Caim, é a condição indispensável do arranque do
processo alquimico de transmutação da consciência humana.
Caim simboliza o ‘mortificatio’ alquimico, assassina o eu
primitivo (Abel) par dar origem ao novo
Eu e que em contexto xâmanico simboliza as provas iniciáticas (de sofrimento e
quase loucura) que passam os candidatos a xamã e que em contexto cristão são
tão bem expressas na Noite Negra da Alma de S. João da Cruz.
Caim ao assassinar o condicionalismo do eu, permite que a
consciência possa passar da realidade ilusória para a verdadeira Realidade
cósmica e Una.
A morte do ego simplesmente recria o processo de Criação,
que nasce de um processo de separação do céu e da terra.
Tudo nasce por
separação, seja nas iniciações xamanicas ( os candidatos ficam separados longo
tempo do mundo) seja na Alquimia pelo Nigredo.
E foi na tradição xamanica pré-histórica que este processo de
transformação espiritual do individuo nasceu na humanidade sempre com um
caracter individualista e não colectivo integrado em seitas, igrejas, ou ordens
secretas iniciáticas.
Já Odin dizia: Sacrificado por mim mesmo a mim mesmo.
Nos Mistérios de Samotrácia a primeira pergunta ao candidato
era se tinha morto algúem.
Era condição sine qua non que o Iniciado fosse um assassino,
do seu ego.....
Não é possivel a transmutação cognitiva do Iniciado senão
pela morte da personalidade, do eu velho.
Só isso permite o despontar de sonhos
e visões, de uma nova capacidade cognitiva e suprasensorial, em que o espaço e
o tempo se autodestroem e se abre á liberdade de estar consciente da Unidade com
o Universo visível e invisivel, de que falam os guerreiros extáticos celtas.
Fernando Pessoa dava a entender isso mesmo quando dizia ‘que
até mesmo pela porta de Satã se podia entrar no reino de Deus‘, ou seja, a
transgressão, as ‘vias tortas’, o não-conformismo são meios de percepcionar a Realidade
mais vasta que nos envolve, de nos despertar para uma outra percepção de nós
próprios e do cosmos em que estamos integrados.
Para os xamãs não havia intermediários entre eles e o Divino
, pois sabiam bem que o homem tem já na sua alma essa função, tal como diz o
livro de Job : ‘O Ruach de Deus está nas minhas narinas‘, Ruach-Alma é o
Espirito de Deus que todos nós somos portadores, é uma função cognitiva do
transcendente em nós, logo para os xamãs não havia necessidade dos
intermediários actuais , igrejas, seitas , lideres ,etc.
Está na natureza do ser humano ser livre ouvinte de Deus.
O simbolo da criança no Xamanismo
Tal como Jesus dizia , ‘vinde a mim as criancinhas que é
delas o reino de Deus ‘ assim o xamã diz que ‘sem se tornar criança’ o
candidato não pode ser iniciado e por isso, o candidato a xamã siberiano rasga
suas roupas, dilacera seu corpo com facas, corre para a floresta e vive nu
entre animais, como a criança-lobo mitológica, antes de inciar o seu Despertar.
A criança é o simbolo de um ser ‘aberto’
ao não racional, face ao ser fechado do homem moderno que só acredita no que
vê. No xamanismo original não existem os papões com que os pais modernos
intimidam as crianças a não sonhar ‘esquisito’ e se comportarem nos padrões
sociais.
No xamanismo original, ao contrário, estimula-se o sonho e a
transgressão social para ‘abrir’ a cabeça do candidato a uma outra Realidade.
E na verdade é na infància que se revela o futuro xamã, por
um comportamento anti social, pelo gosto da solidão, introvertido, sonhador e
visionário de formas, vultos e espiritos que só ele vê.
Apenas em raros casos, o xamã emerge na idade adulta, seja
em mudanças violentas de vida, em situações de quase morte, ou acontecimentos
que subvertem o seu quadro de referências morais e religiosas e que podem fazer
a pessoa decidir que tem de se entregar a um processo de transfiguração
xamanica.
O Xamanismo, precursor dos ritos iniciáticos da Antiguidade
clássica.
Um dos principais rituais de preparação do xamã consistia em
: escuridão, isolamento, privação dos sentidos, tortura pelos demónios,
encontro com espiritos celestes guardiões e ascenção , e finalmente regresso ao
mundo enriquecido por uma experiencia espiritual que o marcará por toda a vida.
Que é isto senão semelhante às mais diversas formas
iniciáticas da antiguidade, como os Mistérios de Elêusis, de Deméter na Grécia?
Basta ler a lenda do Purgatório de São Patrick na Irlanda,
onde numa peregrinação agora cristã, os romeiros chegavam, jejuavam e rezavam
durante 15 dias, e no fim eram desencorajados de continuar, mas se tivessem
firme vontade de prosseguir eram metidos numa gruta por uma noite.
Diz a lenda
que nessa noite o romeiro caminhava na escuridão através de um túnel, para um
recinto onde encontra quinze homems vestidos de branco que o advertem para
regressar ao mundo dos vivos sob pena de ter de confrontar-se e ser torturado
pelos demónios.
Desse confronto com os demónios ele terá escapado por uma
exigua ponte (‘as portas estreitas’ da Biblia) atravessando um abismo para um
local onde é recebido pelos anjos e conduzido ao jardim de Eden.
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