Morte e Iniciação no xamanismo
A Morte é a única garantia para existir Vida.
Para a maior parte da humanidade, a morte é uma viagem sem
regresso, de ida que não tem volta.
A sociedade de consumo moderna quer por força ignorar a
morte, fazer de conta que não existe, pois o ‘seu’ herói actual é o ego.
Todos
nascemos com a ‘marca’ divina, mas a sociedade depressa a apaga para que só
sobreviva o ego, um ente mediocre e limitado.
Quando morre alguém que nos é
proximo, pai, mãe, irmão, somos ‘obrigados’ a admitir, por alguns dias, que
afinal existe, mas passados esses dias de ‘luto’ ( ou fingimento?), depressa
nos comportamos de novo, como se isso nunca tivesse acontecido.
Que diferença com as sociedades primitivas onde a morte fazia
parte integrante da vida e era celebrada e lembrada de forma ritualizada, com a
participação dos Ancestrais nas refeições comunitárias para honrar o morto e
guiar a sua alma no caminho celeste.
Apenas nos casos de ‘quase morte’ e de grandes misticos ou
xamãs avançados, pode haver partida e regresso.
Costuma dizer-se que o xamã
avançado tem em simultaneo, um pé visivel no mundo fisico e humano e outro
invisivel no mundo divino.
Portador de uma assimetria ele é um cidadão de dois
mundos, o humano e o suprasensivel.
A Iniciação xamanica, quando genuina, equivalia a uma
verdadeira morte do velho sentido da auto identidade e da desgatada imagem que
temos de nós próprios.
Desses escombros
nasceria uma nova identidade: um ser mais livre e cósmico.
A Iniciação séria implica necessáriamente uma simulação da
morte, por vezes provocada com sofrimentos indescritíveis, na ânsia de saber o
que se passa para além da morte.
Actualmente, essa simulação acabou por decair e degenerar em
modelos teatrais, meros ritos de passagem, nas sociedades e confrarias chamadas
secretas e inicáticas, que representam apenas teatro e fingimento para
entretenimento de ‘amigos irmãos’.
Para o xamã primitivo a Iniciação era um processo radical de
transmutação da consciência.
Entre as técnicas Iniciáticas, encontra-se a contemplação
dos esqueletos, nomeadamente do seu próprio, não uma contemplação imposta e
ocasional, como acontecia no processo de desmembramento xamanico, mas uma
contemplação voluntária, continua e desejada, através da qual o Iniciado se
autocontempla a si mesmo para interiorizar o ‘nada ‘ que o ser humano é, de
reduzir o seu ego a mero pó e ossos e assim se transformar interiormente ao
reconhecer a impermanência absoluta que é a vida humana.
Esta prática teria outra vertente no xamanismo primitivo, de
indole mágico-ritual que era de, nesta contemplação dos ossos de um xamã
falecido, o adepto poder ‘beber’
mágicamente a sabedoria desses ancestrais através da ‘alma dos seus ossos’.
Esta prática foi cristianizada pelo culto dos ossos (
reliquias) de santos e usada no budismo para obter a noção da impermanência e
ilusão do mundo.
Entre os xamãs esquimós, cada osso tem um nome secreto e
sagrado, transmitido pelo Mestre.
Todos os dias, o candidato vai ao cemitério e
sobre um tumulo de um xamã falecido, contempla os seus próprios ossos, invoca
pelo nome secreto de cada um, os Espiritos nele residentes até receber a ‘Luz’
(simbolo da compreensão da ilusão que é a vida terrena).
O esqueleto na sua brancura, é a objectivação dessa Luz.
Nesta prática, o adepto a xamã, antecipa e vivencia os
momentos da sua morte, está a preparar-se para ela em vida, para a receber e
aceitar quando vier, com tranquilidade e sabendo bem como actuar nesse momento
crucial, enquanto a maioria chega à morte sem qualquer preparação com o
sofrimento e angustia que isso origina.
O xamã iniciado vive, assim, em dois planos, no plano
corporal e transitório da personalidade e da existência, e no plano do ‘outro’
lado, eterno, simbolizado pela noção de impermanência do esqueleto.
Vive mas
está morto para o mundo, já percebeu que a sua casa não é este corpo de ossos
mas um ‘outro’ corpo de Luz e que nasceu para ‘aprender’ isso mesmo!!
Não basta imaginar que morremos, nem fingir através de
exercicios de visualização como se faz actualmente em workshops neo-xamanicos
new age.
Deitados no chão, acreditam ingénuamente, que com a sua fantasia
imaginativa estimulada pelos sons do tambor, atravessam os mundos
suprasensiveis.
Na realidade, atravessam apenas os mundos dos seus devaneios.
Fechado na prisão sensorial do seu corpo e nos limites da sua mente, é muito
dificil para o homem de hoje sair de si mesmo sem uma profunda e dolorosa
mutação da sua condição de sujeito cognoscente.
Não se mata o ‘velho homem‘ vivendo alienado nos valores da
pueril existência quotidiana, nem existindo segundo as normas sociais do
conforto e da sobrevivência, simulando na imaginação provas de dor e
transmutação.
Quem passa pela verdadeira iniciação da morte fica
‘marcado’, estigmatizado, fala-se no xamã ‘ferido’ que leva esse ‘sinal’
mas na realidade a ’marca’ está na sua mudança de atitude perante o
mundo, na mudança da sua maneira de sentir e pensar os outros e o mundo.
Quando regressa deste processo iniciático o xamã vem
reintegrado e não mais dividido, não vem iluminado em êxtase paralitico e
amorfo de tudo, mas permanece clarividente em vida da totalidade da existência
como parte integrante do Todo.
Ele regressa marcado por uma experiência
directa que permanece viva em seu espirito, não como uma lembrança de workshop
xamanico que o deixou numa perplexidade matafisica mas com uma nova capacidade
cognitiva de ‘ver’ no mundo os ‘outros mundos’.
Ele está morto em vida, tem dupla face, pois vive em 2
planos e 2 dimensões.
Consideram-se 7 fases na iniciação xamanica primitiva :
-- Separação do mundo racional e utilitário.
-- Morte e descida ao Mundo Subterrâneo.
--Tortura e desmembramento ( putrefactio alquimico)
-- Ressureição a partir dos ossos
-- Ascenção ao Mundo Celeste
--Identificação com o Fogo e o Sol
-- Reintegração no Mundo Médio ( mundo em que se vive) .
A Luz e o Fogo no xamanismo
Para os xamãs avançados, o Fogo e a Luz são simbolos que se
encontram num patamar superior da evolução, junto aos Deuses Criadores.
A identificação com o Fogo, por vezes representado pelo Sol,
era a etapa iniciática final da transfiguração do xamã, depois da sua passagem
e desmembramento no mundo subterrâneo/inferior e daí ser chamado do Portador do
Fogo que readquiriu de novo o seu corpo de Luz primordial que tinha perdido
aquando da Queda.
O Fogo fazia parte de todos os rituais xamanicos, purificava
os animais sacrificiais, e ‘limpava-os’ para o acto da refeição ritual.
As
entranhas do animal eram oferecidas aos Ancestrais e só depois se comia a carne
já consagrada pela dádiva anterior.
A recepção da Luz, após a ressuscitação, é de uma tão
extrema intensidade sensorial que a prova do seu mérito é conseguir absorver o
seu esplendor sem ser fulminado por ele.
A Luz desce sobre o xamã, que resistiu a longos periodos de
isolamento, de exaustão fisica, e essa Luz transfigura-o, muda-lhe a sua
atitude para o resto da vida.
Essa
mesma Luz vai o xamã encontrar e reconhecer na hora da sua morte fisica, é uma
Luz que já conhece e de quem é já ‘amigo’ e sobretudo não receia.
Com essa mesma Luz vai o xamã se libertar do
corpo em vida e conhecer os reinos do ‘outro mundo’.
O Tambor no xamanismo primitivo
O tambor é um dos instrumentos usados pelo xamã para
despoletar o estado de transe.
Mas o tambor só tem eficácia se integrado num
contexto mais vasto que pode incluir dança, canto, ou outros movimentos
rituais.
O xamã tradicional usava a dança ritual até á exaustão
corporal como meio de alcançar estados de transe com o auxilio do som da batida
do tambor.
O tambor servia apenas para marcar o ritmo e criar um ruido
de fundo com certas frequencias.
O tambor não era, pois, a chave do processo,
mas apenas um seu auxiliar. A chave era a exaustão fisica do xamã.
A percussão entre 130-140
batidas por minuto, em cadência regular e isométrica, pode induzir
efeitos de relaxamento e provocar ondas teta no cérebro responsáveis pelo sonho
e pelos estados profundos de transe e
assim o transe xamânico corresponderia, sob o ponto de vista cerebral, a uma
vivência lúcida da esfera de conhecimento própria da actividade do sonho.
A percussão entre 60-75 batidas por minuto, chama-se ‘batida
do coração’ pois imita o pulsar cardiaco e seu efeito pode derivar de se
rememorar o estado neurovegetativo da criança no seio de sua mãe e a reprodução
do estado fetal em condições de relaxamento e obscuridade pode produzir transes
e visões.
O som do tambor reproduz também o primeiro som vibrado pelos
Deuses, o som grave OM e pode-se dizer assim que o tambor é um instrumento de
oração pela acção do mantra primordial.
A função do tambor é marcar, pelo ritmo e força da batida, a
transição da morte da percepção ordinária para o despertar da percepção
não-ordinária do transe.
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