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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Arte de Bem Morrer






ARS MORIENDI  OU  A ARTE DE BEM MORRER 

Este livro de de autor anônimo, publicado no século XV relata a preparação da pessoa em vida para no momento da morte fisica não ser apanhada de surpresa pelo que aí ocorre. 

Dia da morte, ó dia amargo,
Em que é preciso atravessar o mar,
Cujas ondas são de fogo ardente!
Em verdade, é ser louco varrido
Esperar que a morte
Faça seu ataque para se fortificar.


Os versos acima, do poeta francês Hélinand de Froidmont, chamavam atenção de seus contemporâneos do séc. XII para uma questão central na relação do homem com a morte durante a Idade Média e os primeiros séculos da Idade Moderna, qual seja, a necessidade de se preparar para sua chegada ou “seu ataque”.
“Louco varrido” o que esperasse a morte se aproximar para, então, “se fortificar”.

Não se tratava, é claro, de resistir à morte, que certamente chegaria para ricos e pobres, fortes e fracos, poderosos e submissos, puros e pecadores. 
Fazia-se necessário, em realidade, se preparar antecipadamente para sua vinda. 
E esta preparação, embora fosse de ordem fundamentalmente espiritual, pois objetivava a superação da morte pela vida eterna, não dispensava as atitudes práticas e os aspectos materiais da existência.
Tudo isto demandava um longo processo de aprendizagem que se transformou numa arte, e para ela foram redigidas obras específicas, neste caso da arte de morrer, que tratavam de transmitir aos aprendizes seus ensinamentos básicos.

L’art de bien mourir, ou Ars Moriendi, é obra anônima, cuja tradução francesa, de Guillaume Tardif, “lecteur de Charles VIII”, foi publicada em Paris, em 1492 .

O assunto de que trata a nossa Ars Moriendi reveste-se de grande importância para o homem do quatrocentos e porque não dizer para o homem de hoje : o que fazer quando nossa alma, na hora da morte, enfraquecida pelo medo do desconhecido que se afigura, se vê suscetível aos ataques do diabo? 
Como animá-la? Como reacender a fé e a esperança na mensagem divina? Como fortificá-la? 
É para enfrentar este momento fulcral para nossa existência, pelo qual todos passaremos, indistintamente, que nosso autor anônimo dedicou-se a redigir esses ensinamentos.

Esta obra contém ainda expressivas gravuras que acompanham e, de certa forma, resumem cada um dos capítulos.
De autoria do desenhista francês Antoine Vérard elas funcionam como um reforço poderoso e eloqüente da mensagem que se quer passar, pois dão, de certa forma, concretude, ainda que visual, aos ensinamentos transmitidos por nosso Anônimo aos seus leitores.
E, vale ressaltar, que as gravuras, ao lado do texto, pressupõem uma recepção visual e, de certa forma, individualizada da mensagem escrita.

A morte começou para ser para o homem da Idade Média “ao mesmo tempo familiar e próxima” esperava-se pela morte com tranqüilidade. 
Não havia dramaticidade nesta espera. 
Entendia-se a morte como pertencente a uma ordem maior da natureza, a que todos estavam submetidos e contra a qual não havia de sublevar-se , era um fenómeno colectivo,universal com rituais colectivos próprios que todos seguiam e não havia individualização da morte para cada pessoa.

Todavia, a partir da segunda metade da Idade Média, ou seja, após os séculos XI e XII, foram sendo introduzidas pequenas mudanças naqueles rituais colectivos da morte que, embora não alterem significativamente a familiaridade do homem com esta, passam a dar mais dramaticidade e individualidade aos seus rituais.

São dois os fenômenos que geram essas transformações: a representação do juízo final, que passa a compor a configuração dos rituais ligados à morte; a individualização deste juízo final, que até então possuía um caráter coletivo, conforme descrito no livro do Apocalipse, e que agora passa a ser algo individual, realizado no leito de morte, e relacionando-se diretamente com a história-biografia do moribundo.

A individualização do juízo final, deslocando-o para a hora da morte, para o leito do moribundo, passou a conferir a este momento um papel central na história de cada ser humano. 
O juízo final transformou-se numa última prova, que ao jacente caberia vencer.
Ali, sua biografia seria posta à prova. 
Anjos e principalmente diabos o cercariam como se estivessem num tribunal. 
Últimas tentações e demonstrações de graça seriam postas a sua frente. 
Caberia ao seu livre arbítrio decidir pela fé da graça divina ou deixar-se levar pelos medos aterrorizantes da hora final. 
O momento torna-se, então, dramático a nível individual.

Antes, ritos de fundo coletivo dominaram o cenário dessa transição e o homem podia contar com os seus na garantia de uma boa e tranqüila passagem; agora, passou a pesar mais o comportamento do indivíduo que, em forma de espelho, se veria refletido no omento do julgamento. 

Cabia, desta feita, preparar-se bem para o “ataque” da morte.

A Ars Moriendi de nosso Anônimo foi escrita dentro desse contexto e desejava cumprir a função de ajudar aqueles que têm de enfrentá-la. 

O texto com que se inicia a obra, anterior aos capítulos e subdivididos em três seções, aponta para o dramático da hora da morte e para a necessidade de ajuda daquele que se encontra neste momento final
As perguntas feitas na primeira seção não deixam dúvida quanto a isso:

‘’Quem será o meu leal amigo, meu fiel socorro no meu último combate, na hora dificil da separação do meu corpo ? Quem me ajudará, quem me falará e responderá por mim ? Quem me livrará quando eu for chamado perante o Julgamento do Senhor, quando os meus inimigos me rodearem por todos os lados e me acusarem dos meus erros, quando eles me tentarem levar para o fogo do inferno eterno, quando a minha própria consciência e as minhas obras em vida deêm testemunho contra mim ?’’.

A relação do homem com a morte é assim descrita em termos bélicos, “ultimo combate’’.

À severidade do julgamento de Deus, juntam-se as acusações dos inimigos que se esforçam por enviar o homem para o fogo eterno do inferno. 
Todavia, atente-se para a individualização do processo acusativo expresso pelos últimos elementos da pergunta: obras e consciência individuais podem testemunhar contra o próprio homem. 
Lembre-se que muita da literatura humanista e renascentista traduzirá exatamente esta consciência de se trazer o inimigo interno, dentro de si.

Como diz o poeta quinhentista português Sá de Miranda: “Comigo me desavim,⁄ sou posto em todo perigo;⁄ não posso viver comigo⁄ nem posso fugir de mim (...) Que meo espero ou que fim⁄ de vão trabalho que sigo,⁄ pois que trago a mim comigo,⁄ tamanho inimigo de mim?”

Todas as respostas, ou melhor, a resposta à pergunta principal, “Quem será o meu leal amigo?”, está pressuposta no próprio livro. 
Seu autor arvora-se como o “leal amigo”, ao qual poderemos recorrer, por meio dos ensinamentos que se transmite, nesse momento fulcral de nossa existência. 
Fica assim sugerido neste texto inicial o desejo do Anônimo de justificar a redacção e a importância de sua Ars Moriendi como meio de os homens de bem se prepararem para o “ultimo combate”.

A Arte de Bem morrer, compõe-se de duas partes: uma pequena, espécie de introdução ao livro, contendo considerações de ordem mais geral expressas em dois capítulos; outra maior, formada por dez capítulos, em que se busca demonstrar, primeiro, quais as tentações que atingem o homem no momento de sua morte e, em seguida, quais as recomendações para daquelas fugir, de modo a ter uma passagem para a vida eterna tranqüila, ou seja, os ensinamentos sobre a arte de bem morrer propriamente ditos.

Segundo nosso autor, algo mais terrível do que a morte física pode acontecer ao ser humano, qual seja, a morte espiritual. 
Esta pode sobrevir justamente quando está próxima aquela outra, a física, no momento exato em que estamos mais frágeis, mais suscetíveis às tentações, a ceder à danação eterna. 
Com o fim de evitar que o homem caia nas tentações que o atacam no momento final, afirma nosso autor, a obra foi escrita.

Observe-se que no texto de nosso Anônimo, está implícito que outras pessoas acompanhassem o moribundo neste momento, sendo inclusive responsáveis pelas admoestações que lhe eram feitas, caso ele se esquecesse de algum item muito á semelhança do que se refere em outros livros do género de outras civilizações, como o Livro dos Mortos do Egipto ou o Bardo Thodol, o livro da Morte dos Tibetanos.

O deslocamento do juízo final para os momentos finais da vida terrena conferiu-lhe não só maior dramaticidade, mas também passou a exigir do moribundo um maior preparo para enfrentar as ameaças deste instante final, em que sua alma seria, então, disputada por forças do bem e, principalmente, do mal.

Tendo em vista esta última batalha, fazia-se necessário instrumental ou armas para enfrentá-la. 
Eis o palco de ação de nossa Ars Moriendi.

A segunda e maior parte de L’art de bien mourir, como já dissemos, é composta por dez capítulos, cinco que referem as 5 tentações do diabo ao morto e outros 5 que falam como os anjos se podem opor e ajudar o morto a resistir a elas.

Assim, aos pares, tentação diabólica e inspiração angelical travam um árdua luta pela alma do moribundo, que se vê enredado num emaranhado discursivo, em que se agitam o diabo, que surpreendentemente ganha voz e de forma arguta recorre até mesmo às palavras de Deus para seduzir o pobre agonizante; e, por outro lado, o anjo que o consola e o admoesta a persistir na trilha cristã, acompanhado por palavras de um grande número de autoridades, os “´sábios comtemplativos”, e também por parábolas, figuras e imagens que buscam fortalecer a fé doente.

É exatamente a fé do homem em trânsito para a morte o primeiro alvo do diabo.
Segundo nosso Anônimo, o diabo sabe que é nesta hora de medo, de dor, de fragilidade que a fé do homem em Deus é mais susceptível de ser abalada, é quando o homem vacila na crença na misericórdia divina.

Diz o diabo ao moribundo:

''Ó desgraçado, pensas que o que ouves sobre a Fé é verdadeiro e que tu, homem cheio de pecados, possas ser redimido e digno de possuir o Paraiso mais que os anjos que por um único pecado (o pecado de Lúcifer, anjo da Luz)  foram condenados eternamente ? O inferno existe para todos os pecadores e por mais penitências que faças, não lhe podes escapar''.

O capítulo continua apresentando as argumentações que poderá utilizar o diabo para abalar a estrutura do “edifício de fé”, que se vê fragilizado pela proximidade da morte.

A contraposição à argumentação do maligno vem no capítulo seguinte, no qual a boa inspiração do anjo tratará de lembrar ao moribundo que Deus não permite que as tentações diabólicas sejam maiores do que a capacidade de resistência dada aos homens.
Apoiado numa série de exemplos, via de regra provenientes da Bíblia ou dos escritos dos Padres da Igreja, o anjo arrola um número significativo de homens e povos que, por meio da fé, resistiram aos tormentos e às tentações infligidas pelo diabo - o povo hebreu, Abraão, Isaac, Jô, os apóstolos, os mártires da Igreja etc.

A segunda tentação de que se trata é a que busca atingir a esperança do homem na misericórdia divina. 
 Segundo nosso autor, o diabo, neste ponto, age, primeiro, desestabilizando o moribundo, lembrando-lhe de todos os pecados cometidos, inclusive mostrando-lhe o livro em que aqueles estariam registrados. 
Mais uma vez, a voz discursiva é entregue ao diabo que lista uma diversidade de pecados cometidos pelo agonizante, veniais e mortais, como a blasfêmia, o não guardar os dias santos, o não honrar pai e mãe, o roubo, o adultério, a violação, a avareza, a inveja, a luxúria, a cólera etc. 
Frente a isto, e com uma argumentação que recorre mesmo a citações bíblicas, como a que lembra as palavras de São Tiago sobre o juízo final - " o julgamento será sem piedade para com aqueles que não tenham sido piedosos’’, o diabo acaba por induzir o doente à completa desesperança.

Como consolo da situação a que a desesperança pode levar, no capítulo seguinte, o anjo lembra, por meios dos Salmos e das palavras de São Bernardo, que Deus é, sobretudo, misericordioso e que enviou seu filho para sofrer a paixão exatamente para redimir os pecadores
Portanto, um coração contrito e arrependido não será abandonado pela graça divina, “ por isso a Esperança não deve ser abandonada mesmo existindo pecados‘’.

A avareza, que ataca em particular àqueles que possuíam riquezas, que pertenciam a importantes linhagens, é a terceira forma do diabo tentar o pobre e frágil moribundo. 
Ele lhe lembrará de cada um de seus bens, dos prazeres que lhe davam, da incerteza sobre o destino desses, enfim, aguçará no doente a preocupação com os bens materiais. 
A esta tentação, o anjo, no capítulo seguinte, responde com a lembrança da proveniência do homem: “ Deixa e pôe de lado as coisas do mundo. Lembra-te que tu és pó, que do pó vieste e que para o pó irás’’ . 
Além disso, traz-lhe à memória a figura de Cristo, rei que veio ao mundo como filho de pastor. 
Exorta-se assim o abandono das coisas materiais a favor daquilo que mais interessa nesse momento dramático, a vida espiritual.

A penúltima tentação diz respeito à impaciência que atinge o doente no momento de grande dor. 
Nesta hora, aproveita-se o diabo desta fraqueza para fazer o homem murmurar contra Deus, insuflando no coitado o sentimento de abandono, de injustiça, de rejeição. 
A este perigo vivido pelo moribundo, o anjo responde com o elogio da paciência. 
Anima o homem a sofrer com resignação, lembrando-lhe que sua dor pode significar purificação, como se no Purgatório estivesse, e também meio de encurtar o caminho para salvação de sua alma.

Não tendo conseguido fazer o homem cair em nenhuma das quatro tentações anteriores, o diabo, segundo nosso Anônimo, recorre argutamente a um último estratagema para conquistar a alma do moribundo. 
A vaidade, a vã-glória, o pecado que fez cair o primeiro dos homens, é convocado para o centro da cena. 
O diabo astutamente recorda ao homem toda sua entrega à causa cristã e as recompensas que deve advir de tal dedicação.

Insufla-lhe a idéia de que não são justos os sofrimentos que lhe atacam na hora final frente às boas ações de toda uma vida: 

‘’Ó homem valente na fé e forte na Esperança para com teu Deus, deves ter grande glória nisso, pois não és como os outros homens que são pecadores. 
Todavia, eles por um gemido e um olhar para Deus,  conseguiram o beneficio que seria devido apenas a ti, a ti que sempre viveste na virtude, fizeste boas obras e sempre resististe aos vicios e tentações como um verdadeiro cavaleiro. 
Por isso deves exigir a Deus como teu direito uma glória especial de todos os outros e esse direito não pode ser-te recusado pois tu sempre combateste com coragem pela fé de Deus.’’

Estas palavras desencadeiam o sentimento de orgulho no pobre homem, que se sente injustiçado com a doença e o sofrimento.
Do orgulho parte-se para a blasfêmia contra Deus, que não estaria sendo justo com ele ao proporcionar-lhe um fim digno de sua dedicação anterior.

Frente a esta última ameaça diabólica, o anjo opõe uma argumentação em que recorre a estratagema semelhante ao do diabo, ou seja, depois de lembrar ao moribundo que em tudo que fazemos não há mérito pessoal, pois tudo se deve à permissão divina - “Sem mim nada podes”, toma como exemplo o próprio diabo-Lúcifer que, motivado pela vã-glória e pela vaidade, enfrenta Deus e é expulso do céu e jogado no profundo do inferno. 
O orgulho foi a causa de sua queda. 
À vaidade, o anjo recomenda a humildade, pois ela agrada a Deus e é por ele recompensada. 
Resignar-se humildemente ao fim que lhe foi determinado é, portanto, o ensinamento final que o anjo transmite ao moribundo.

Em um último capítulo, em que fecha sua Arte de Bem morrer , nosso anônimo autor recomenda que seu leitor, na hora da morte, repita duas orações transmitidas por dois padres da igreja, São Cassiodoro e Santo Agostinho, nas quais o moribundo roga a Deus que o aceite em seu braço misericordioso e entrega a alma aos seus cuidados. 

E, por fim, aconselha que toda “sábia pessoa” cultive durante sua vida um fiel amigo e bom companheiro que possa acompanhá-lo nesse momento tão delicado de passagem
Como se chamou atenção no início dos comentários da obra de nosso Anônimo, está claro que o próprio texto da Ars Moriendi apresenta-se como amigo fiel e indispensável desse trânsito da vida terrena para a vida eterna. 

O deslocamento do Juízo Final - antes localizado em um fim de mundo ao mesmo tempo abstrato e atemporal, que coincidiria com a vinda do Redendor -, para um tempo e lugar concreto, ou seja, a hora da morte e para o leito do moribundo, não só trouxe maior dramaticidade para a cena, como obrigou os homens desse período a prepararem-se para o “ataque final, como o descreve o poeta Froidmont.

1 comentário:

  1. Muito bom, nos faz refletir sobre a questão fundamental de toda a filosofia humana.

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