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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Filhos de Deus ou Servos do mundo ? Parte 1





Filhos de Deus ou Servos do mundo? 

Segundo Jacob Boehme

PARTE 1

Lúcifer e Adão, o primeiro homem, constituem um claro exemplo do que o eu é capaz quando toma a luz da natureza como sendo sua, passando a caminhar preocupado com o seu próprio domínio.

Enquanto o eu ou a razão estiverem cativas de uma prisão sólida e cerrada, ou seja, na cólera de Deus e na materialidade, torna-se muito perigoso para um homem fazer uso da luz do conhecimento no eu, como se ela estivesse em sua posse, pois, a ira do eterno e da natureza temporal logo irão tomar o gosto por isso, e então o eu e a própria razão do homem irão surgir no orgulho, deixando de lado a verdadeira humildade resignada para com Deus.

Vemos que freqüentemente, nos dias de hoje, o mesmo erro traz o perigo sobre os iluminados filhos de Deus; quando o sol da grande presença da santidade de Deus brilha neles, fazendo com que a vida triunfe, a razão se enxerga como que num espelho, a vontade invade o eu, buscando a si mesma, experimenta o que é o centro, de onde brilha a luz; a vontade com seu próprio movimento e força se lança neste centro, de onde surge o abominável orgulho e o amor próprio; esta é então a razão própria da criatura, não mais é o espelho da Sabedoria eterna, julgando-se maior do que realmente é; depois disto, o que quer que faça, pensa ser a vontade de Deus que faz através dela e nela, continuando com seu desejo próprio; esse desejo próprio surge, prontamente, no centro da natureza, adentrando aquele falso desejo do eu contra Deus; a vontade entra então num auto-conceito e exaltação.
Com isto, o homem fica como que bêbado no eu; e ainda o convence de que está sendo guiado por Deus; com isto o bom princípio, onde a luz divina brilha na natureza, começa a se deteriorar e a luz de Deus deixa o homem.

Mas ainda fica a luz da razão, a luz exterior da natureza exterior ainda permanece brilhando na criatura e o eu se lança nela, acreditando ser a primeira luz de Deus; mas não é bem assim.

Nesta auto exaltação na luz de sua razão exterior, o mal que tinha sido forçado a sair da primeira luz, que era divina , retorna mais forte para sua primeira casa; ‘’encontrando a casa limpa e adornada, ali faz sua morada, sendo pior para o homem do que antes”.

Esta casa que está tão limpa e adornada, é a luz da razão no eu onde o mal encontra uma porta aberta, a fim de entrar com seu desejo e assim separar a alma, exaltando-se a si mesmo.

O mal entra numa bela casa para habitar a luz da razão.

Ali ele entra, coloca seu desejo na luxúria do eu e das más imaginações, onde o espírito da vontade vê a si mesmo nas formas das propriedades da vida na luz exterior, e então o homem se afunda em si mesmo, como se estivesse bêbado, as estrelas se apegam a ele, trazendo suas fortes influências (na razão exterior) a fim de que ele ali possa buscar e manifestar as maravilhas de Deus.

Pois, todas as criaturas suspiram e almejam a Deus, e ainda que as estrelas não possam apreender o espírito de Deus, é preferível ter um lugar de luz (neste caso, o homem) onde possam se regozijarem, do que uma casa fechada onde não possam ter descanso.

Assim caminha o homem, como se estivesse bêbado, na luz da razão exterior, chamada de estrelas, apreendendo grandes e maravilhosas coisas, contando com uma orientação contínua.
O mal, presente, observa se alguma porta permanece aberta para ele, através da qual possa aceder ao centro da vida, para que o espírito da vontade possa atingir o topo do orgulho, ou da cobiça (de onde surge a arrogância, a vontade da razão desejando ser honrada); pois supõe ter atingido toda a felicidade, ao adquirir a luz da razão, pensando controlar a casa dos mistérios ocultos que está fechada; mas que só Deus pode abrir, não o homem da razão.

O homem iludido, acredita ter alcançado o topo, que a honra se deve a ele, pois ele adquiriu a compreensão da razão, mas não lhe passa pela cabeça que o mal afinal apenas o fez casar com seu desejo nas sete formas da vida do centro da natureza, nem que cometeu um erro abominável.

Desta errada compreensão da razão surgiu uma falsa religião, onde os homens ensinam e criam regras baseadas em conclusões da razão, e que pretende colocar a criança (do homem) , embriagada em seu próprio orgulho e auto-desejo, sobre o trono, trono esse que afinal pertence ao mal que aí tem seu abrigo o tempo todo.

O mesmo acontece com todos aqueles que já foram, alguma vez, iluminados por Deus e que mais uma vez abandonaram a verdadeira resignação, desmamando, deixando o puro leite de suas mães, ou seja a verdadeira humildade.

A razão irá perguntar: Qual o problema que um homem consiga a luz de Deus e também a luz da natureza exterior e da razão, a fim de ordenar sua vida sabiamente ? 

Sim, está certo mas note bem como se deve usá-la:

Quando a luz de Deus se manifesta pela primeira vez na alma, ela brilha como a luz de uma vela, acendendo a luz exterior da razão, imediatamente; porém, ela não se revela totalmente à razão, a ponto de ficar sob o domínio do homem exterior.
Não, o homem exterior se vê apenas através do brilho desta luz, da mesma forma como se vê através de um espelho; por este intermédio ele aprende a se conhecer, o que é bom e proveitoso para ele.

Mas se a razão, que é o eu criaturalizado, não vai além do que vê no eu da criatura, e não entra com a vontade do desejo no centro, na busca de si mesmo, assim procedendo se separa da substância de Deus (que surge juntamente com a luz de Deus, de onde a alma se deve alimentar e refrescar) e come só da substância e da luz externa, fica diminuida ou melhor desiqulibrada porque perdeu a parte divina e se agarrou apenas à parte externa terrestre.

A vontade da criatura deveria mergulhar totalmente em si mesma, com toda sua razão e desejo, julgando-se uma indigna criança, não merecedora de tão alta graça; não deveria atribuir qualquer conhecimento ou compreensão a si mesma ou desejar de Deus que o eu de suas criaturas tivesse qualquer compreensão; mas mergulhar sincera e profundamente na graça e amor de Deus, desejando estar como que morta para si mesma e para sua própria razão, na vida divina, resignando-se totalmente ao espírito de Deus no amor, para que Ele faça com ela o que e como quiser, como se fosse Seu próprio instrumento.

Sua própria razão não deve entrar em nenhum tipo de especulação, seja em questões humanas ou divinas; não ter vontade ou desejo de nada senão a graça de Deus.

Como uma criança, deve buscar continuamente os seios da mãe, e sua fome penetrar continuamente o amor de Deus, e nunca, por motivo algum, saciar esta fome.

Quando a razão exterior triunfa na luz dizendo: “Tenho a verdadeira criança”, então a vontade do desejo deve se curvar até à terra, num ato de profunda humildade e da mais simples ignorância, dizendo: “Tu és um tolo e nada mais tens do que a graça de Deus. Deves te revestir desta crença com grande humildade, e não te tornar nada em ti mesmo.

Tudo o que tens, ou que está em ti, deve ser considerado nada mais que um mero instrumento de Deus; tu deves trazer este desejo, unicamente para a misericórdia de Deus, deixando de lado todo o teu próprio conhecimento e vontade; estes devem ser considerados como que nada e nunca induzir qualquer vontade a integrá-los novamente”.

Se trouxeres esse desejo, unicamente para a misericórdia de Deus, a vontade natural começará a ficar fraca e frágil e o demônio não é mais capaz de separar a alma com seu desejo mau, pois os lugares onde encontrava repouso se tornaram extremamente impotentes, estéreis e secos; então, o Espírito Santo que procede de Deus, toma posse das formas de vida, fazendo com que Seu domínio prevaleça.

Ele acende as formas de vida com Suas chamas de amor; surge então, o alto conhecimento do centro de todas as coisas, de acordo com a constelação externa e interna ou complexo astral da criatura, num fogo bastante sutil e seco, que aparece num grande deleite.
Neste instante a alma humilde, mostra desejos de mergulhar na luz e se considera como sendo nada e indigna.

Quando o seu próprio desejo penetra aquele nada (onde Deus cria), realizando ali o que é a vontade de Deus; o espírito de Deus emerge através do desejo da humildade resignada; então o eu humano segue imediatamente o espírito de Deus, numa alegria humilde e estremecedora; neste estado ele poderá ver o que é no tempo e na eternidade, pois tudo é apresentado diante dele.

E dirá : Seja feita a tua vontade, eu nada posso fazer, eu nada sei; não irei a lugar algum, senão para onde tu me guiares como instrumento teu; faz de mim e em mim a tua vontade”.

Em tal humildade e total resignação, a faísca de poder divino cai no centro das formas de vida, como uma faísca no pavio, acendendo-o.

Uma vez que a luz do poder divino se acende, a criatura deve seguir em frente, como um instrumento do espírito de Deus, falando o que é ditado pelo espírito de Deus; a criatura não é mais possessão de si mesma, mas é um instrumento de Deus.

Não pode haver distracções pois, tão logo, numa mínima proporção que seja, a alma divagar em suas próprias buscas e especulações, Lucifer (a má vontade, a vontade do eu ) a verá no centro das formas de vida, separando-a, a fim de adentrar o eu.
É preciso portanto, continuar perto da humildade resignada, para o seu bem, devendo sugar e beber da fonte de Deus e não abandonar, de forma alguma, os caminhos de Deus.

Pois tão logo a alma prove do eu, e da luz da razão exterior, ela passa a ter opinião própria e vai agir no exterior e não na fonte, tornando-se seca.
A alma continua então de erro em erro, até se submeter de novo à resignação, reconhecendo-se como uma criança maculada, de razão resistente, e assim conquistar novamente o amor de Deus.
O que é muito mais difícil de conseguir neste caso do que no primeiro, pois, o mal a trouxe para fortes dúvidas, e não irá abandonar a sua presa tão facilmente. 

Toda especulação com relação as maravilhas de Deus é muito perigosa, pois o espírito da vontade pode rapidamente se desviar da rota certa e se ficar cativo de novo no exterior .

Só quando o espírito da vontade caminha com determinação em direção ao espírito de Deus, ele tem poder na humildade resignada para admirar as maravilhas de Deus.

Não digo que o homem não deva pesquisar e aprender sobre as artes naturais e as ciências; não; este conhecimento é útil para ele; mas o homem não deve começar com sua própria razão.

O homem não deve deixar que a sua vida seja guiada pela luz da razão exterior, que é boa em si, mas deve mergulhar com esta luz na mais profunda humildade diante de Deus, e colocar o espírito e a vontade de Deus adiante de todas as suas pesquisas, a fim de que a luz da razão possa ver e conhecer as coisas através da luz de Deus.

Ainda que a razão possa ser bastante sábia em sua esfera própria, ajudando o homem a acumular conhecimento, ela não deve arrogar tal sabedoria e conhecimento para si mesma, como se fosse sua possessão; deve dar glória por ela a Deus, somente a Ele pertence toda sabedoria e todo conhecimento.

Quanto mais profundo a razão mergulhar na humildade simples, à vista de Deus; quanto mais ela se julgar indigna aos olhos de Deus; mais verdadeiramente morre no auto desejo, mais o espírito de Deus a penetra, trazendo-a ao mais elevado conhecimento, a fim de que com o tempo venha observar os grandes mistérios e maravilhas de Deus.

Pois, o espírito de Deus somente opera na humildade resignada, naquilo que não busca e nem deseja a si mesmo.
O espírito de Deus se apodera de tudo o que deseja ser simples e humilde diante de Deus, trazendo-o para Suas maravilhas; somente aqueles que temem e que se curvam diante de Deus é que O deleitam.
Deus não nos criou sómente para nós mesmos, mas para sermos instrumentos de Suas maravilhas, através dos quais deseja manifestá-las.

A vontade resignada confia em Deus e espera dele tudo de bom; mas a vontade própria do alto se conduz a ela mesma , pois está separada de Deus.

Tudo o que a vontade própria faz é pecado contra Deus; pois abandonou aquela ordem onde Deus a criou, adentrando a desobediência, desejando ser seu próprio senhor e mestre.

Quando a vontade do homem morre para si mesma, fica livre do pecado pois, não deseja mais nada senão aquilo que Deus deseja de Sua criatura; deseja fazer unicamente aquilo para que Deus a criou; aquilo que Deus fará através dela; e muito embora seja ela quem faz, não deixa de ser apenas um instrumento do fazer, pelo qual Deus realiza a Sua vontade.
O homem pensa consigo: “Faço meu trabalho não para mim mesmo, mas para Deus, que me chamou e me escolheu para isto; sou apenas um servo em sua vinha” 
Ele ouve continuamente a voz de seu Mestre, que em seu interior o instrui naquilo que deve ser feito.
O Senhor fala nele e o comanda a fazer o que Ele teria feito por ele.

O eu, no entanto, faz o que a razão externa das estrelas comanda, razão onde o mal paira com seu desejo.
Tudo o que é feito pelo eu, é feito sem a vontade de Deus, em conjunto com a fantasia, a fim de que a cólera de Deus ali realize o seu passatempo.

Nenhum trabalho feito sem a vontade de Deus pode atingir o Reino de Deus; não passa de uma imagem inútil, ou de um trabalho manufaturado, nesta grande agitação da humanidade.

Nada agrada a Deus, senão aquilo que Ele próprio faz usando a vontade como instrumento.

Pois, só há um único Deus na essência de todas as essências, e tudo aquilo que trabalha com Ele, naquela essência é um espírito com Ele.
Mas aquele que trabalha consigo mesmo, em sua própria vontade, está apenas consigo mesmo e não em Seu domínio.

De fato, está sob aquele domínio universal da natureza, pela qual toda vida está sujeita a Ele, o bem e o mal, mas não sob aquele governo divino especial dentro dele, que só compreende o bem.
Não é divino o que caminha e trabalha sem a vontade de Deus.

Portanto, o que quer que seja feito por conclusões do eu humano, em matéria de religião, é uma mera ficção. Trata-se de Babel, um trabalho das estrelas, do mundo exterior, não reconhecido por Deus como Seu trabalho.
Trata-se apenas de uma luta romana da natureza, onde o bem e o mal combatem um contra o outro; o que um constrói, o outro destrói.
Esta é a grande miséria dos fúteis distúrbios dos homens, uma questão a ser julgada por Deus.
Aquele que se preocupa ou trabalha muito em tais tumultos, trabalha apenas para o seu julgamento final pois tudo deve ser separado na putrefação.
Pois, aquilo que é lançado à cólera de Deus, por ela será recebido e mantido no mistério do desejo até o dia do julgamento de Deus, quando o bem e o mal deverão ser separados pela eternidade.

Mas se o homem parar e se afastar de si mesmo, penetrando a vontade de Deus, aquele bem que também foi lançado por ele, deverá se liberar do mal por ele lançado.

Como disse Isaías: “Ainda que seus pecados sejam vermelho escarlate, se houver o arrependimento, eles se tornarão como a lã, brancos como a neve”.

Pois, o mal deve ser devorado pela morte na ira de Deus, e o bem deve florescer, como um rebento da terra selvagem.

Todo o falso desejo, através do qual o homem planeja juntar para si, bens materiais, prejudicando ou ofendendo o próximo, é levado para a cólera de Deus e pertence ao julgamento. 
No julgamento tudo será manifestado, cada poder e cada essência, toda causa e todo efeito, tanto no bem como no mal, serão apresentados diante a cada um no mistério da revelação.

Todas as más obras, feitas propositadamente, pertencem ao julgamento de Deus.
Mas as obras daquele que se voltou contra a vontade, deixando o seu poder, pertencem ao fogo que purifica.
Ambos os tipos de obras deverão ser manifestados no final.

Toda criatura deve saber, pelo estudo-conhecimento-sensibilidade, da necessidade de continuar na condição em que foi criada; senão, ela cai em contrariedade e inimizade para com a vontade de Deus, adentrando por si mesma ao sofrimento. 

Pois, cada criatura inteligente que perdeu seu lugar ou estado na ocasião em que Deus a criou pela primeira vez, encontra-se em desordem e miséria, até que se recupere.

Uma criatura criada das trevas não tem sofrimento algum nas trevas; assim como uma serpente venenosa não sofre com seu veneno.
O veneno é a sua vida; mas se ela tiver que perder seu veneno e ter algo de bom em seu lugar, tendo que manifestá-lo em suas essências, isto seria o sofrimento e a morte para ela.
Assim o bem é um tormento para um ser cuja natureza é má, e o mal, da mesma forma, é sofrimento e morte para o bem.

O homem foi criado do paraíso, para o paraíso e no paraíso; do amor, para o amor e no amor de Deus; mas se ele lança a si mesmo à cólera, que trata-se de um sofrimento venenoso e morte, então aquela vida de amor paradisíaca contrária, é dor e tormento para ele.

De Deus e em Deus existem todas as coisas; a luz e as trevas, o amor e o ódio, fogo e luz; mas ele só se denomina Deus, à luz de Seu amor.

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