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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Regresso à Montanha de Nietzsche

Ó! Solidão! Pátria minha! Vivi muito tempo em países selvagens estranhos, para não regressar a ti sem lágrimas!


Ameaça-me agora com o dedo, como uma mãe, sorri-me como sorri uma mãe, e diz somente: « Quem foi que em tempos fugiu do meu lado como um furacão? Aquele que ao partir exclamou: Demasiado tempo fiz companhia à solidão; esqueci-me então do silêncio? Foi isso sem dúvida, o que agora aprendeste?

Ó! Zaratustra! sei tudo! e sei que tu, irmão, te sentias mais abandonado entre a multidão do que jamais estiveste comigo.

Uma coisa é o abandono, e outra coisa é a solidão; eis o que aprendeste agora! Que entre os homens serás sempre selvagem e estranho mesmo que te amem; porque o que eles mais querem é que se lhes guarde consideração.

Aqui, porém, estás na tua pátria e na tua casa; podes aqui dizer tudo e espraiar-te completamente: aqui ninguém se envergonha de sentimentos ocultos e tenazes.

O abandono é muito diferente. Recordas-te Zaratustra, quando a tua ave se pôs a gritar por cima de ti, estando tu no bosque, indeciso, sem saber para onde ir, ao lado de um cadáver, quando dizias: “Guiem-me os meus animais!
Encontrei mais perigo entre os homens do que entre os animais”. Aquilo era abandono.

Ó! solidão! Pátria minha! Como a tua voz me fala celestial e afetuosamente!

Nós não nos interrogamos, não nos queixamos um ao outro: passamos juntos francamente pelas portas abertas.

Porque em ti tudo está aberto e iluminado, e as próprias horas deslizam aqui mais ligeiras, pois na obscuridade o tempo parece-nos mais pesado do que à luz.

Aqui eleva-se-me a essência e a expressão de todas as coisas: tudo o que existe quer exprimir-se aqui e tudo o que está em vias de existir quer aprender a falar de mim.

Lá em baixo todo o discurso é vão! A melhor sabedoria é esquecer e passar: foi isto o que eu aprendi agora.

A mim já não me agrada respirar o seu hálito. Ai! ter eu vivido tanto tempo entre o seu ruído e o seu mau hálito.

Ó! bendita solidão! Ó! puros aromas! Como este silêncio aspira o ar puro a plenos pulmões! Como este bendito silêncio escuta!

Pelo contrário, lá em baixo tudo fala e nada se ouve.
Entre eles tudo fala mas já ninguém sabe compreender.
Tudo cacareja mas quem é que quer ficar ainda no ninho a chocar ovos?
Entre eles tudo fala, tudo se divulga. E o que antigamente se chamava mistério e segredo das almas profundas, pertence hoje às trombetas públicas e a outros pregoeiros ambulantes.

Ó! singular natureza humana! Bulício em ruas escuras. Eis-te de novo atrás de mim: aquilo que é o meu maior perigo fica agora para trás de mim!

As contemplações e a compaixão foram sempre o meu maior risco pois todos os seres humanos querem ser contemplados e socorridos.

Eu estava entre eles disfarçado, disposto a desconhecer-me para os suportar, comprazendo-me em dizer, para me convencer: “Louco, tu não conheces os homens!”

Esquece-se o que os homens são quando se vive com eles. Há demasiadas afinidades em todos os homens.

Picado por moscas venenosas e roído como pedras pelas numerosas gotas de maldade, assim estava eu entre eles, e ainda dizia comigo: “Todos estes pequenos não são responsáveis pela sua pequenez!”

Especialmente os chamados “bons” foram os que me pareceram as moscas mais venenosas: picam com toda a inocência; mentem com toda a inocência. Como poderiam ser justos comigo?!

Ocultar-me a mim mesmo é a minha riqueza: eis o que aprendi lá em baixo — porque em cada um deles encontrei pobreza de espírito.

Não é necessário remover o lodo; basta viver nas montanhas.

Com o nariz satisfeito respiro outra vez a liberdade das montanhas! Finalmente o meu nariz libertou-se do cheiro de todos os seres humanos!

Assim falava Zaratustra.

Nietzsche - Assim falou Zaratustra 3, 9.

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